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sab, 21/11/2015 - 02:09

A culpa é de quem, hein?

Me lembrei de anos atrás, quando estava no cinema, vendo as primeiras cenas de "A Culpa de Voltaire" e ter pensado: taí, a Metareciclagem é como a França. Parece querer reivindicar para si a invenção da liberdade.

Apesar de tudo isso acontecer no século XXI, há um certo anacronismo e não linearidade nas memórias e acontecimentos. O filme ganhou o prêmio em Veneza no início, na década seguinte fez parte das salas de exibição no Brasil e a lista metarec ainda funcionava como um espaço de conversa, mas eu já pensava 'bem' antes de começar ou participar de alguma delas e por isso guardei essa interpretação comigo. Estamos mais perto da terceira década, esse site milagrosamente resiste e o assunto requer atenção, mais do que nunca.

O filme trata da vida de um imigrante tunisiano e começa com diálogos ensaiados para a entrevista do visto de permanência no país da liberdade, igualdade e fraternidade. Não vou dizer como termina, é claro. Mas isso é claro também, com a sutileza que a arte permite e a vida, nem sempre.

Diz-se que Voltaire teria nascido em 21 de novembro. Viveu muito pros padrões do século XVIII. Defendeu as liberdades civis, se insurgiu – através de sua obra – contra o poder do governo e igreja ao mesmo tempo em que aconselhava monarcas. Polêmica e contradição o rondavam, como é peculiar aos humanos, especialmente os que se atrevem.

Nenhum intuito de exaltar Voltaire. Até porque, depois de mais de dois séculos, é evidente que suas ideias requerem revisão e crítica. Reler cartas é sempre uma experiência singular. Mas trata-se de um personagem e tanto, que dá nome ao filme e aparece mesmo sem dar as caras.

Já sobre a Tunísia, pouco sei. O diretor do filme é de lá e vive na França desde criança. Do quase nada que conheço do mundo árabe, acho que gosto mais da ideia de escrita como desenho levada às últimas consequências. Seu nome fica bonito assim: عبد اللطيف كشيش. Não sei se sua dupla nacionalidade o ajudou a ganhar a Palma de Ouro em Cannes recentemente, mas a lista de contemplados tem pouca variação de países de origem. Algo, no mínimo, suspeito.

Sobre a Argélia, sei menos ainda. De lá que o personagem principal afirma ter vindo. E nessa conexão África-mundo árabe chegamos a hoje, 20 de novembro, feriado em São Paulo e alguns outros municípios. Um dia que tem gente capaz de querer intitular “Dia da Consciência Humana”, numa espantosa falta de senso do ridículo nas 'redes sociais'. Mais até do que postar foto de bebedeira na madrugada. Porque, pior do que não lutar por nada ou apenas por seus próprios interesses, é não compreender a luta do outro. Mesmo que racionalmente, através daquele entendimento raso da vida: o conhecimento que se adquire nos livros didáticos pra lá de controversos quando a sensibilidade de observar o dia a dia falta.

E nesse cotidiano contemporâneo que cansa, lembrei de Umberto Eco e sua recente declaração apocalíptica, sobre o poder das redes sociais “dar voz a uma legião de imbecis”. Como se a culpa fosse da tecnologia e não da condição humana... prova de que intelectuais não são deuses...

Difícil descobrir qual a maior imbecilidade presente nas redes sociais, mas certamente a prática de comparar e ranquear tragédias, cobrar ou acusar o outro por estar deste ou daquele lado – como se a terra não fosse redonda e a vida, um ciclo – está no topo da minha lista de hits.

Fácil entender porque uns assuntos têm mais visibilidade que outros: monopólio dos meios de comunicação, concentração de poder político, interesses corporativos, privatização da vida pública, o choque e a audiência que a violência direta, extrema e explícita provoca, o tal do meio ambiente que está em tudo e por isso se torna pouco perceptível, embora de 'meio' não tenha nada...

A cor da lama é de uma estética dura, rude e cruel, mas nem por isso menos bela. Glauber Rocha já mostrou isso faz tempo e seu filho Erik, em “Campo de jogo”, não nos deixa esquecer (a propósito, ali tem material suficiente pra pesquisar os caminhos do DNA num viés bem pouco biológico ou 'científico', só que isso é assunto pra outra hora).

*frame de “Campo de Jogo"

 

Curioso que a igualdade seja branca, uma cor que é a 'reunião' de todas as outras num misto de ausência e presença conceitual. Previsível que a fraternidade seja vermelha, como o sangue que vem de dentro, que impulsiona e mantém a vida. Intrigante que a liberdade seja azul, como o céu e sua amplitude distante.

Duas cores primárias e uma soberana na tela principal e outra telinha com a cor resultante da soma de muitos pincéis no mesmo copo, aquela cor-não cor. Uma contém essência, que faz gerar as outras cores-luz e tem a força de um símbolo. Toda vez que se ataca um símbolo, nossa vulnerabilidade fica muito mais evidente. A outra tem os elementos terra e água como essência, numa cor matéria. O que é denso nunca é simples de lidar.

E nesse dia a dia contemporâneo que cansa, chovem convites para estar nas ruas, desaguam motivos para ali permanecer: lama que devasta, água que falta, escola que se faz necessário ocupar, avenida que abre e se divulga fechada, manipulação das prioridades, proliferação das intolerâncias, parlamentar reencarnando direto da idade média pra idade mídia, vigilância dos corpos alheios, ainda a desigualdade de gêneros, de novo a guerra, mais uma vez as pequenas grandes batalhas...

Se fugir do chativismo sempre foi uma meta pessoal, o ativismo nunca foi uma ambição. Tanto pela escolha de não-rótulo quanto pela multiplicidade de causas e a dificuldade de escolher uma. Mas a urgência não permite a omissão. E se tem algo que aprendi aqui é a diferença entre essas duas posturas e que tipo de ativista desejaria ser, caso algum dia queira. Continuo com a perspectiva de defender a humanidade, como um todo, com a tática da persistência e a estratégia da sutileza radical – por mais esquisito que isso soe.

20 de novembro pra mim, aqui, é um dia de pensar sobre liberdade. Dia 21 começou como um dia de escrever cartas, portanto. Algumas estranhas, como essa. Porque a culpa – essa coisa católica – não é de ninguém, mas a responsabilidade é nossa.

Agora preciso ir ali, entregar umas flores... evocar mais energias positivas e pedir ajuda pralgum tipo de iluminação de outro mundo...

*frame de “La faute à Voltaire"

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