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Paes Afirma Que Vila Autódromo Permanecerá e Que Urbanização das Favelas Foi Sucesso
Na terça-feira, 16 de janeiro, o Prefeito Eduardo Paes recebeu perguntas de um grupo de aproximadamente 80 pessoas no OsteRio, evento organizado pela revista virtual Vozerio e o Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS).
O tom do encontro foi amigável, porém muitas perguntas foram críticas. A discussão abrangeu tópicos desde a Vila Autódromo e o legado das Olimpíadas para as favelas do Rio, tanto quanto a violência urbana, os investimentos da cidade em museus e a escolha do prefeito para o candidato que o sucederá, Pedro Paulo, que nega acusações de violência doméstica contra sua esposa.
A jornalista Julia Michaels perguntou ao prefeito sobre os planos para a Vila Autódromo durante e depois dos Jogos Olímpicos. Uma vez pressionado a tomar uma posição, Paes refez seu discurso de que a Vila Autódromo é o único caso de remoção que ocorreu diretamente por conta dos megaeventos, e acrescentou que o processo está quase no fim: “Só resta uma [família] que não quer sair, que é obrigada a sair. E das outras todas, que não precisam sair, têm trinta. Querem ficar e vão ficar. Não tem problema nenhum”.
O Prefeito Eduardo Paes tem afirmado repetidamente que parte da comunidade irá ficar, mais recentemente ao público para O Globo em outubro do ano passado e para a BBC Brasil em agosto. Entretanto, as atividades recentes das tropas de choque e da guarda municipal na comunidade, crescentes ameaças das autoridades municipais, e um aparente descaso com os danos causados no bairro pela construção do Parque Olímpico têm deixado os moradores em estado de pânico e na espera de truculência. Após saberem das últimas reafirmações do prefeito, os moradores postaram na página da comunidade no Facebook:
“Cadê o plano de urbanização prefeito? De nada adianta afirmar que as famílias que desejam ficar terão sua vontade respeitada, se na prática o que a prefeitura faz é tornar a vida na Vila cada vez mais difícil!”
Moradores e aliados que seguem a comunidade de perto ficaram chocados na manhã de 21 de janeiro, menos de 48 horas após a declaração do prefeito, quando 150 integrantes da tropa de choque entraram na comunidade, visitando os moradores das trinta casas que o prefeito disse que ficariam, informando que eles deveriam parar a construção. O comprometimento do prefeito de manter a Vila Autódromo parece constituir um “Cavalo de Tróia”, uma das estratégias documentadas pelo RioOnWatch usadas pela Prefeitura em locais onde pretendem remover uma comunidade muito visível. Nestes casos, declarações públicas são usadas para difundir a preocupação do público, enquanto por trás dos panos cenas de despejo apenas se intensificam.
No OsteRio, o prefeito continuou: “E os outros, todos saíram, voluntariamente”. Embora alguns moradores da Vila Autódromo receberem ofertas das primeiras indenizações a preço de mercado na história da favela, as ameaças dos oficiais da Prefeitura combinadas com a deterioração dos espaços públicos da comunidade fizeram com que mais moradores foram forçados a sair da comunidade do que a quantidade de indenizações aceitas sugere. O RioOnWatch documentou a história de vários moradores, incluindo a Heloisa Helena, Jane, Tadilmarco, Barrão, José, entre outros–que se sentiram forçados a aceitarem as ofertas para irem embora enquanto desejavam permanecer.
O prefeito lembrou a platéia que os que deixaram a Vila Autódromo tiveram a opção de aceitar apartamentos no Parque Carioca, um condomínio de habitação pública do programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) localizado a um quilômetro da comunidade. “Para as pessoas que adoram fazer esses dossiês”, ele disse, provavelmente se referindo aos dossiês do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas, sobre as violações dos direitos humanos à frente da Rio 2016, “eu convido eles a passar comigo no condomínio”. Enquanto algumas famílias antigas da Vila Autódromo com certeza estão agradecidas pelas novas casas, o RioOnWatch tem documentado um alto grau de insatisfação entre diversas famílias realocadas ao Parque Carioca e em outros condomínios do MCMV, devido a queixas de má construção, dificuldade de cobrir os custos, distância e violência.
A família mencionada pelo prefeito como a única que ainda falta ser removida vive no caminho de uma estrada de acesso recém-planejada para o Parque Olímpico. Eles estão entre os moradores que tem sido mais vocais ao longo dos anos, e se mantiveram fortemente envolvidos nas reuniões da comunidade, inclusive na geração do Plano Popular da Vila Autódromo, plano de urbanização popular premiado internacionalmente. O plano participativo, inicialmente projetado para urbanizar toda a comunidade, trazendo-a para o padrão e garantindo a todos os moradores a permanência ao lado do Parque Olímpico, foi atualizado por moradores e as duas universidades federais envolvidas de forma iterativa, a cada passo ao longo do caminho.
Quando pressionado sobre o que vai acontecer com a Vila Autódromo e a área do Parque Olímpico após os Jogos Olímpicos, o Prefeito Eduardo Paes disse que uma das arenas esportivas poderia ser transformada em uma escola. Ele negou especulações de que prédios de apartamentos de luxo serão construídos na área de imediato, enfatizando que é uma “área pública”.
Já sobre o legado das Olimpíadas para as favelas em geral, Paes destacou os avanços feitos nas favelas da Zona Norte e Zona Oeste no acesso primário aos cuidados de saúde pública, assim como a melhora da urbanização. Ele referenciou o programa de urbanização das favelas Morar Carioca e foi além listando as melhorias em relação a água, esgoto e iluminação pública.
Morar Carioca foi um plano municipal popular e premiado internacionalmente para a urbanização participativa das favelas, e ainda é promovido como um legado social fundamental das Olimpíadas de 2016. O objetivo foi urbanizar todas as favelas do Rio de Janeiro até 2020. Ele também prometeu um processo de seleção rigoroso para os escritórios de arquitetura responsáveis pelos projetos e sua implementação, e um grau de participação popular alto e influente na parte da comunidade.
Infelizmente, Morar Carioca na sua forma promissora original foi abandonado, conforme os meios de comunicação internacionais já reconheceram. A pesquisadora Kate Steiker-Ginzberg do RioOnWatch encontrou em 2014 que a marca do Morar Carioca foi usada para projetos que não cumprem as normas do programa.
As melhorias que o Prefeito Eduardo Paes listou não foram implementadas através do processo prescrito. Um robusto envolvimento da comunidade e significativa urbanização de favelas não têm sido características da sua administração. Ainda assim, ele insinuou que sua administração já levou a urbanização para todas as favelas através do Morar Carioca quando argumentou que “a única coisa que não foi cumprida, que era uma promessa olímpica… é a questão da Baía de Guanabara“.
Enquanto os depoimentos do Prefeito visam oferecer tranquilidade aos moradores do Rio e aos defensores das favelas por toda a cidade e o mundo, também dão um lembrete de promessas não cumpridas. Não são apenas os moradores da Vila Autódromo que estão perguntando: “Onde está o plano de urbanização, Sr. Prefeito? ” Todos nós podemos perguntar: Onde está o legado das Olimpíadas para as favelas, Sr. Prefeito?
Nova Ocupação Vito Gianotti Trabalha para Transformar Hotel Abandonado em Habitação Social
O ambiente estava tenso na noite de segunda-feira 18 de janeiro, quando cerca de 30 pessoas se reuniram em círculo num hotel abandonado no bairro do Santo Cristo, na Região do Porto do Rio. Este grupo se autodenomina Ocupação Vito Gianotti, nome do famoso líder do movimento social no Rio que lutou por causas populistas e direitos para os trabalhadores. O grupo escolheu este nome porque 15 de janeiro, dia em que o grupo assumiu a ocupação do hotel, era o aniversário de Gianotti.
Os ocupantes, que consistem em pessoas que necessitam de habitação, quatro ativistas de movimentos sociais de todo o país e estudantes de universidades locais, entraram no prédio as 3 da manhã em 15 de janeiro com pouca oposição. Os movimentos envolvidos eram a Central de Movimentos Populares (CMP), o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e a União Nacional por Moradia Popular (UNMP).
A ocupação do hotel abandonado veio após uma longa deliberação entre os movimentos sociais. O hotel, agora vago há mais de dez anos, é de propriedade do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). O Ministério das Cidades está em deliberação com o INSS há muitos anos para vender o hotel para que ele possa ser convertido em apartamentos de habitação a preços acessíveis. Uma vez que não se verifique progresso nas negociações entre o INSS e o Ministério das Cidades, movimentos sociais decidiram avançar com a ocupação.
Os líderes que participam nesta ocupação acham absurdo que um edifício tão estruturalmente sólido poderia ser deixado vago por tanto tempo quando há tanta falta de moradia adequada na área do Porto. Como um dos ocupantes disse: “Isso se encaixa com um provérbio que temos aqui no Brasil: ‘Muitas pessoas sem casas, muitas casas sem gente'”.
Após investigarem agora de perto o edifício, os líderes descobriram que a estrutura é forte, mas que ainda será necessário fazer grandes reformas para garantir acesso à água, energia elétrica e Internet.
Enquanto apoiar ocupações urbanas individualmente não é novidade para nenhum dos quatro movimentos sociais participando, a abordagem de ocupar em conjunto é uma novidade notável. Cada uma destas organizações nacionais pode alavancar suas amplas redes para divulgar a situação e pressionar funcionários do governo. Eles estão usando amplamente a mídia social para enviar informações para o maior número de pessoas, fazendo a ocupação muito visível desde o começo, o que é raro entre as ocupações urbanas. Tais ocupações tradicionalmente trabalham fora do radar, sob medo constante, se mantendo muito vulneráveis, até que eles estejam mais estabelecidos.
Aqueles que ocupam o hotel estão tanto ansiosos quanto otimistas. Eles falam em voz baixa durante as reuniões de modo que aqueles no lado de fora não possam ouvir. Apesar de não terem enfrentado anteriormente extrema força pelo governo, há o medo constante de que a polícia possa aparecer em frente ao hotel a qualquer momento.
No entanto, os moradores estão esperançosos pelos seus planos de transformarem o hotel em cerca de 28 apartamentos de um e dois quartos. Uma liderança da CMP falou animadamente sobre planos para estabelecer um centro comunitário nas grandes salas do hotel para as comunidades do Santo Cristo que não possuem um local de encontro. Houve também discussões sobre a utilização de parte do edifício convertido para um lugar onde os próprios líderes do movimento pudessem viver. Os ocupantes estão trabalhando atualmente com uma equipe de advogados para continuar as negociações em curso com os órgãos do governo federal sobre o futuro do edifício.
Ocupantes do hotel estão convencidos da necessidade de conquistar moradia popular de qualidade, a preços acessíveis na cidade. Com a proximidade das Olimpíadas, muitas comunidades sofreram remoções e outras pressões que estão os arrancando dos seus lares. Os ocupantes estão indignados de como o poder público não tem respeitado as vidas e casas que os moradores levaram anos para construir.
Desde 21 de janeiro, o grupo conseguiu ocupar o hotel por seis dias.
Não perca o vídeo publicado ontem pelos organizadores do Vito Gianotti para celebrar o quinto dia de ocupação bem-sucedida:Relatório da Comissão da Verdade do Rio Denuncia Violência nas Favelas Durante a Ditadura
“Fomos tirados dessas comunidades [Favela da Praia do Pinto, Ilha das Dragas e Ilha dos Caiçaras] como animais. O governo, a Polícia Militar e a COMLURB iam botando nossas coisas pra cima dos caminhões de lixo, metendo pé de cabra e marreta nos barracos, derrubando.” Com essas palavras, Altair Guimarães narrou para a Comissão da Verdade do Rio (CEV-Rio) como foi a remoção forçada que vivenciou durante a ditadura civil-militar (1964-1985), quando tinha apenas 14 anos.
A CEV-Rio foi criada pela lei estadual 6.335/2012 para investigar as graves violações de direitos humanos ocorridas no regime de exceção e para subsidiar os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Após dois anos e oito meses de trabalho, a comissão entregou seu Relatório Final ao governo do Estado em cerimônia realizada no Palácio da Guanabara no dia 10 de dezembro de 2015. O governador Pezão cancelou sua participação na última hora. Na ocasião, também lançou seu novo portal, onde o relatório e os documentos que o embasaram podem ser acessados.
Assim como as outras medidas adotadas pelo Estado brasileiro para lidar com as violações de direitos humanos do período, a CNV foi criada com limites bastante claros. Após um início turbulento, a comissão logrou ter tranquilidade para trabalhar e avançou—timidamente—em alguns pontos. Teve o grande mérito de colocar o assunto da ditadura na pauta da opinião pública, alavancada pela efeméride do cinquentenário do golpe. No entanto, seu Relatório Final foi entregue à presidenta Dilma Rousseff—ela mesma uma ex-presa política—sem que o destino das mais de centenas de vítimas de desaparecimento forçado fosse identificado.
Contudo, esta não foi a única lacuna deixada pela CNV. Muito se falou sobre como a comissão reafirmou certa visão sobre a ditadura, segundo a qual as vítimas do regime teriam sido somente os militantes políticos da esquerda armada—em sua maioria homens, brancos e oriundos das classes médias e altas. Embora também tenha efetuado um pequeno avanço nesse campo, ao dedicar capítulos de seu relatório à violência cometida contra os setores LGBT, os indígenas e os trabalhadores urbanos e rurais, a Comissão Nacional da Verdade não teve força para alterar esse perfil usualmente identificado como as vítimas da ditadura.
Algumas comissões estaduais, no entanto, se debruçaram mais detidamente sobre estes aspectos. Nesse contexto, a CEV-Rio buscou se dedicar à pesquisa sobre a violência de Estado nas favelas cariocas durante o regime. Para tanto, contou com a colaboração dos historiadores Juliana Oakim e Marco Pestana. Após a coleta de depoimentos de vítimas e a análise de centenas de páginas de documentos obtidos no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro e no Arquivo Nacional, os pesquisadores produziram um artigo que subsidiou um capítulo do relatório da Comissão Estadual da Verdade sobre a temática. No documento, a CEV-Rio afirma que as violações de direitos humanos nas favelas durante a ditadura se estruturaram a partir de dois eixos: as remoções forçadas e a presença militarizada do Estado no cotidiano dos moradores.
A ditadura e o projeto de erradicação de favelasEntre 1962 e 1974, mais de 140,000 pessoas foram removidas de suas casas, em especial nos bairros que se tornavam mais atrativos para o mercado imobiliário, como a Lagoa Rodrigo de Freitas e o Leblon. Se a política de remoções sistemáticas foi iniciada com o então governador Carlos Lacerda—um dos principais articuladores civis do golpe—ainda antes da ditadura, foi em 1968, com a criação da Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Rio de Janeiro (CHISAM), órgão federal subordinado ao Ministério do Interior, que a ditadura passou a dirigir o processo, garantindo recursos, força política e o uso irrestrito da repressão para viabilizá-lo. Nesse contexto foram removidas as favelas citadas por Altair Guimarães, e da Lagoa Rodrigo de Freitas, ele foi transferido para a Cidade de Deus, em Jacarepaguá. “[O bairro] era sem nenhuma infraestrutura, era barro puro. Eu e os meus amigos fomos separados, alguns foram para Cordovil e outros foram para outro lugar. Vivi uma vida muito ruim na minha adolescência com essa mudança de um lugar para o outro,” conta ele.
As remoções, contudo, não ocorreram sem a resistência dos moradores. A CEV-Rio localizou documentos inéditos que comprovam a prisão de lideranças da Federação de Associações de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG) que se articulavam para combater o processo. Em um caso emblemático, os moradores da Favela do Esqueleto, ameaçada de remoção poucos meses após o golpe, organizaram um plebiscito na comunidade a fim de mostrar às autoridades que queriam ficar. Etevaldo Justino, então presidente da FAFEG, foi preso acusado de fazer “ativismo subversivo” entre os favelados e, após a repressão, a remoção foi realizada e os milhares de moradores foram expulsos do local onde hoje é a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
Com a decretação do Ato Institucional nº5 e o recrudescimento da repressão política, mais lideranças foram presas e associações de moradores sofreram intervenção da ditadura, abrindo caminho para que os despejos forçados se intensificassem. Assim, o período entre 1968 e 1974 viu cerca de 90,000 pessoas removidas. Nesse momento, multiplicaram-se os incêndios criminosos nas favelas—o mais marcante foi o que acometeu a Favela da Praia do Pinto, deixando milhares de desabrigados e acelerando a remoção da comunidade. José Fernandes, transferido de uma favela em Botafogo para a Cidade Alta, e hoje morador da Rocinha, expressou o sentimento da época: “a remoção da comunidade Santa Terezinha se deu tranquila, não houve tumulto nem nada não, porque também não tinha como fazer tumulto, chegou um montão de polícia. Naquela época ali, estava no auge da coisa, então não tinha tumulto. Nosso barraco lá era um barraco de madeira, saiu o último morador, eles botaram fogo. Na época eram aquelas patrulhinhas, joaninhas, e muita polícia mesmo.”
“Intensificar as batidas nas favelas”Um dos documentos localizados pela CEV-Rio é a ata de uma reunião realizada em 1971 com representantes dos órgãos da repressão. Entre informes acerca da captura dos chamados “subversivos” e discussões sobre as estratégias do regime para sufocar as oposições, o representante da Polícia Militar do Estado da Guanabara afirmava que iria “intensificar as batidas nas favelas, realizando-as da ordem de 3 a 4 vezes por semana.” Com isso, a comissão concluiu que as violações cometidas pelo regime nas favelas eram conhecidas pela “alta hierarquia do regime ditatorial” e estavam longe de representar “casos isolados.” Dentre essas violências, amplamente registradas no relatório, estão blitzes, prisões arbitrárias, depredações nas sedes das associações de moradores, invasões a domicílios sem mandados, dentre outras.
Fernandes também relatou como se dava essa presença militarizada do Estado: “dentro dessa comunidade aqui, os caras entravam com olhar de ‘todo mundo é bandido.’ Aquelas rondas, aquelas blitzes dentro do morro, eles entravam com suporte militar, entravam e desciam com a gente amarrado tipo arrastão de peixe, todo mundo amarrado na mesma corda, descendo o morro. E quando dava dez horas da noite onde você estivesse, você tinha que correr da polícia. Se você não corresse… depois de dez horas da noite os caras te prendiam e dependendo, se fosse preso na sexta-feira à noite, só saia na segunda-feira.”
Segundo a CEV-Rio, as motivações da ditadura para reprimir o cotidiano das favelas eram duas. Por um lado, o estigma de que aqueles locais de moradia eram propensos à criminalidade. Por outro, a intensificação do discurso anticomunista, que aprofundava o terror de que “os favelados poderiam atuar como base para uma revolução de caráter comunista.” Nesse contexto, a militarização do Estado, a transformação das Polícias Militares em forças auxiliares do Exército e a garantia da impunidade para os agentes públicos envolvidos em violações de direitos humanos acarretaram em uma ampliação da violência que se voltou contra as populações faveladas.
Em alguns casos, mesmo após a remoção, os moradores deixaram de sofrer com a violência policial. José Fernandes contou à Comissão que, morando na Cidade Alta, seu temor passou a ser os esquadrões da morte—como a Invernada de Olaria—e a repressão aos bailes black realizados nos subúrbios. “Eu me lembro muito bem que a gente saindo do baile tinha aquela polícia naval que fazia ronda ali,” diz ele, contando como uma vez foi preso na saída de um desses bailes: “correram, saíram atrás da gente, pegaram o nosso grupo. Eu tinha um cabelo que era um black grande, e os caras cortaram nosso cabelo, deixaram a gente careca. Levaram a gente para dentro do quartel, deram um banho de água fria na gente. E ficamos lá até a tarde do outro dia. [Era] final da década de 70, a gente pregava na época o fim da ditadura nos bailes, a igualdade. E o movimento black era discriminado. Diversas vezes, também, nesses bailes, você tinha a presença da PE [Polícia do Exército]. Era perigoso, a gente saía e não sabia se ia voltar, ou se ia entrar em cana, o que ia acontecer.”
A atualidade das violaçõesUma das atribuições legais das Comissões da Verdade é a de identificar padrões de violações de direitos e fazer recomendações para evitar sua repetição. Assim, a CEV-Rio dedicou um capítulo de seu Relatório Final às violências de Estado no presente: tanto a violência policial presente no dia a dia dos moradores de favelas quanto as remoções forçadas que ocorrem no Rio de Janeiro dos Megaeventos foram analisadas pelo órgão.
Do ponto de vista das repetições de torturas, desaparecimentos forçados e execuções sumárias, a CEV-Rio foi categórica em afirmar: “a perspectiva militarizada da segurança pública tem como principal problema a compreensão da existência de um inimigo interno potencial, que se torna alvo do aparato bélico.” Este inimigo potencial, segundo a comissão, tem um novo perfil específico: jovens, a maioria negros e pobres, moradores das periferias urbanas e favelas.
Quanto às remoções, a comissão concluiu: “repetindo práticas semelhantes àquelas empreendidas pela ditadura militar, o Estado continua violando o direito à moradia adequada de milhares de cidadãos.” Assim como no passado, o poder público utiliza a força, a violência e métodos não democráticos para abrir espaço em áreas de interesse da especulação imobiliária. Emblemática destas repetições é a história de Altair Guimarães, que hoje é presidente da Associação de Moradores da Vila Autódromo e revive a ameaça da remoção forçada: “Eu não desejava que as crianças dessa comunidade [Vila Autódromo] passassem pelas mesmas coisas que eu passei, mas, infelizmente, não consegui. [No passado] não respeitavam as crianças, não respeitavam os mais velhos e não é diferente hoje. A mesma coisa que acontecia na época da ditadura acontece hoje.”
Para acessar o texto dos historiadores Juliana Oakim e Marco Pestana, clique aqui.
Para acessar a íntegra do Relatório Final da Comissão da Verdade do Rio, clique aqui.
Lucas Pedretti é mestrando em História na PUC-Rio, e foi assessor da Comissão da Verdade do Rio.
Favelas nas Notícias: Resumo de Dezembro 2015
Antes da entrada de 2016 e da culminação do RioOnWatch, projeto iniciado em 2010 pela Comunidades Catalisadoras (ComCat) para documentar as transformações acontecendo nas favelas do Rio em função dos Jogos Olímpicos de 2016, nós olhamos para 2015 com nossa mais recente análise das melhores e piores reportagens internacionais sobre as favelas do Rio. Dois dos melhores artigos foram do próprio mês de dezembro: uma matéria inovadora e altamente visível sobre a Vila Autódromo na revista TIME e uma história sobre remoções pré-Olímpicas no Vice, ambos os quais a equipe da ComCat deu apoio.
Nossa própria cobertura da Vila Autódromo incluiu uma análise das pressões que vêm aumentando e se tornando cada vez mais opressivas com a Prefeitura se agarrando a curtos prazos como ferramenta para pressionar os moradores, até então informados que poderiam ficar. Cobrimos a terrível história de remoção da Dona Mariza, que foi deixada sem moradia quando sua casa foi destruída em outubro, e eventos criativos de resistência que continuam ocorrendo semanalmente nessa comunidade implacável, como o festival cultural #OcupaVilaAutódromo e a desobediência civil dos moradores conforme eles se juntaram para trabalhar na sua tão esperada creche.
Este mês, o Comitê Popular da Copa do Mundo e Olimpíadas publicou o seu maior e mais extensivo dossiê de violações dos direitos humanos à frente dos “Jogos de Exclusão”. Mais de 22.059 famílias já foram removidas de suas casas em todo o Rio. Pelos direitos humanos, como o direito à moradia, tanto moradores de cidades brasileiras e juízes possuem igual falta de conhecimento dos direitos legais duramente conquistados por moradores de favelas. Na mesma semana do lançamento do dossiê, centenas de ativistas debateram e cerca de 50.000 pessoas comemoraram o Dia Internacional dos Direitos Humanos, em Madureira.
Madureira também foi o local de um protesto poderoso contra o assassinato de jovens negros, na sequência da polícia inexplicavelmente ter matado cinco jovens em Costa Barros. Como uma forma de reflexão e resistência à violência em curso, as mulheres do Caju e Manguinhos mapearam a violência em suas comunidades. Alguns ativistas de favela dizem que o foco na luta contra a violência sistêmica que afeta a população negra das favelas é uma das razões por trás da baixa participação de moradores de favela nos protestos de dezembro contra o impeachment da presidente Rousseff.
Um artigo expressando indignação pelo ativista-jornalista do Alemão, Raull Santiago, defende a importância da elaboração de relatórios sobre violações de direitos, como a violência policial, e ao mesmo tempo de mostrar o lado positivo das favelas, que é um ato de resistência em si. A paralisação temporária do WhatsApp em dezembro e a enorme indignação (e humor), expressado pelos brasileiros de todos os lugares nas mídias sociais, destacou o papel fundamental das novas tecnologias de internet e plataformas em amplificar a voz de cidadãos.
Também neste mês, o controverso Museu do Amanhã finalmente abriu e um perspicaz artigo do CityLab abordou o simbolismo complexo do edifício na região do Porto, fundamental para a herança afro-brasileira como o maior porto de escravos na história do mundo. Não muito longe do museu, o quilombo Pedra do Sal e apoiadores comemoraram dez anos do reconhecimento da importância histórica do quilombo e da candidatura em curso para o reconhecimento como Património Mundial da UNESCO.
E finalmente, os moradores da Vila Laboriaux e colaboradores transformaram um terreno baldio mirando o desenvolvimento de uma floresta urbana comestível para a comunidade. Essa revitalização constitui um de vários projetos de melhorias e de desenvolvimento sustentável comunitário que os moradores da Vila Laboriaux estão implementando, o que é mais marcante visto que a Prefeitura pediu a remoção da comunidade após os deslizamentos de terra de 2010.
Aguarde pelo nosso próximo resumo dos artigos de janeiro conforme entramos no importante ano Olímpico.
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Vila Autódromo às Vésperas de Violência? Comunidade Acorda Com Tropa de Choque e Novo Muro
Nesta quarta-feira, 13 de janeiro, a Vila Autódromo acordou por volta das 7 horas da manhã e encontrou, em torno do bairro que hoje é lar para algumas dezenas de famílias, um grande número de policiais da Tropa de Choque do Rio, teoricamente a polícia apropriada para o controle de grandes distúrbios em manifestações civis e eventos públicos. Os moradores não tiveram nenhum aviso que eles estariam lá ou o que estava para acontecer. Na falta de informações, os moradores temiam uma repetição da tentativa de demolição, a mesma ocorrida em junho passado, que resultou em conflito com a Guarda Municipal e pelo menos seis feridos.
Acompanhada do sub-prefeito da Barra da Tijuca, Alex Costa, e sua assistente Marli Peçanha, a Tropa de Choque instalou uma grande cerca branca em toda a estrada principal da comunidade, que agora corta uma grande parte do acesso da comunidade à lagoa. A cerca isola as casas de duas famílias que permanecem na parte da margem da Vila Autódromo, conforme descrito neste vídeo por um dos moradores remanescentes. Agora, essas famílias terão de chegar a suas casas através do Parque Olímpico, que ainda está em construção, solicitando permissão cada vez que receber um convidado em suas casas para entrar através do Parque. Um morador mediu a distância que essas duas famílias agora têm de andar até o ponto de ônibus mais perto de sua casa, algo como cinco a seis quilômetros através do Parque.
Embora a polícia deixou a área antes de meio-dia, os membros da comunidade ficaram juntos depois para discutir formas de reagir. Um morador falou sobre a necessidade de identificar as leis específicas que protegem o direito da pessoa de acesso à sua própria casa. Moradores também sugeriram que os funcionários municipais sabem exatamente que essas leis existem, mas que se aproveitam de moradores que não têm a mesma familiaridade com essas leis.
Em resposta à construção do muro, um grupo de moradores foi até a polícia local para registrar um boletim de ocorrência. Os moradores queriam ter certeza de que todos os aspectos do incidente fossem registrados formalmente. Eles acreditam que a chegada, que o horário, logo pela manhã cedo do incidente, foi para surpreendê-los, e sentiram a falta de notificação aos moradores antes de vir e o uso das tropas de choque armadas como descabido e constituindo um crime. Na primeira, a Polícia Militar não iria registrar o incidente, uma vez que acreditava que não havia crime cometido; a Polícia Civil deu a mesma resposta.
Quando os moradores da Vila Autódromo insistiram que pelo menos um relatório de eventos deveria ser registrado, o primeiro relatório da polícia foi vago e não incluía detalhes, tais como a presença das tropas de choque ou a falta de aviso prévio. Mesmo depois de adicionados mais detalhes e o relatório formal do que aconteceu apresentado, o incidente foi classificado como um “fato atípico,” o que significa que não há crime cometido.
Na página da comunidade no Facebook moradores escreveram: “Impediram nosso acesso a uma parte da comunidade, usaram a tropa de choque GM para intimidar, fecharam uma VIA PUBLICA. Então, o que é crime?”
Ontem de manhã, quinta-feira 14 de janeiro, moradores relataram ainda mais um motivo de preocupação. A barricada que os moradores haviam erguido e mantido na entrada da comunidade, com vigilância 24×7 por moradores desde dezembro, foi removido pela Guarda Municipal durante a noite. Moradores substituiram a barricada original com uma nova. A barreira original feita de tábuas, caixas de madeira e móveis, foi construída para evitar que grandes caminhões arruinem ainda mais a estrada principal que atravessa a Vila Autódromo em seu caminho para o canteiro de obras do Parque Olímpico, e para impedir as demolições não consensuais que ocorrem em propriedades que ainda não tenham recebido a devida compensação. Mais uma vez, os moradores não receberam aviso prévio e eles escreveram no Facebook: “Como sempre, não sabemos o que poderá acontecer.” Eles declararam a intenção de impedir a Guarda Municipal de remover a barricada se tentassem novamente, e pediram ajuda para aqueles que os apoiam: “Quem puder nos apoiar vem pra cá, porque a situação pode ficar tensa!”
Deste desenrolar dos acontecimentos na Vila Autódromo, a partir do uso da Tropa de Choque tradicionalmente associada à reintegração de posse de terras urbanas, até a remoção da barricada que fornece alguns elementos de proteção e aviso para os moradores, a semana pinta um quadro sombrio para a violência que pode vir a acontecer nas próximas semanas, pois já entramos em 2016 e aparentemente a Prefeitura está desesperadamente tentando remover os moradores remanescentes da Vila Autódromo.
Vídeo por moradores descrevendo a construção do muro na comunidade:
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