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FotografiaGambiarra

enviado por Guilherme Maranhão em dezembro/2009

 

Não me incomoda a tecnologia em si, me incomoda o fato dela não conseguir conviver em harmonia com as práticas individuais de cada fotógrafo. Isso fica evidente dadas as circunstâncias em que o marketing utilizado pela indústria fotográfica insere a tecnologia, como solução única, na cultura fotográfica. O resultado disso pode ser
constatado pela existência de fotógrafos que medem a imagem pela câmara que foi usada para fazê-la e não pelos atributos da imagem em si, dentre eles: processamento, grão, ruído, montagem, manipulação, composição, matéria, suporte, tamanho, referente, resolução, formato, momento, dificuldade, luz, foco, profundidade de campo,
bidimensionalidade, perspectiva, reprodutibilidade, degradação, acaso, intencionalidade, intervenção, gradação de tons e contraste. Espero que os produtores de imagens percebam que a indústria vende uma imagem da fotografia em alto contraste: ou funciona porque é novo ou não funciona porque é obsoleto. Na verdade há milhares de meios tons nessa imagem.

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Na época da invenção do daguerreótipo a exposição à luz era exageradamente longa e a cada mês ou mesmo semana avanços nas pesquisas tornavam possíveis exposições cada vez mais curtas. Nos anúncios dos comerciantes da fotografia esse tempo de exposição (cada vez mais curto) figurava sempre em destaque. Assim se media o avanço
da técnica. Hoje é o megapixel que mede o avanço tecnológico da fotografia.

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Então, como produzir imagens?

Primeiro, conhecendo o que está disponível materialmente. É ai que aponto para dois tipos diferentes de lixo: o lixo-objeto (o pedaço de madeira de lei que retiro da caçamba frente a uma construção para usar em uma de minhas câmaras) e a técnica-lixo (a que descubro na leitura do livro de Jacob Deschin, escrito em 1936, e que tento usar nos dias
de hoje). A arqueologia do reaproveitamento é a base do meu processo de trabalho, encontro o objeto-lixo e tento descobri qual a técnica-lixo que se esconde dentro dele. Experimento. Observo cada peça e descubro qual o papel dela no sistema, imagino como posso usar aquele sistema para criar uma imagem.

Gasto meu tempo nessa empreitada e o relato que acompanha esse texto pode fazer jus a isso. Esse é meu trabalho, o de garimpar, o de descobrir o que se esconde nas dobras de um fole de uma câmara antiga. Tento guardar isso que foi um dia perdido, tento manter registros de como as coisas podiam ser feitas, não repugno o Photoshop e tudo que ele representa, me jogo nessa direção também, me apaixono pela tecnologia digital e tento misturá-la em tudo que faço, mas reconheço as limitações dessas soluções, como reconheço as dos processos aos quais tento dar uma pequena sobrevida. Limitações não faltam em qualquer direção. Vejo limites, vejo possibilidades, vejo imagens, vejo processos, vejo soluções, vejo consertos a serem feitos e sobretudo vejo que outros olham para mim espantados com as
possibilidades das coisas decrepitas que tenho em minhas mãos. Me disponho a sentar e aprender como fazer, me disponho a olhar para essas coisas e imaginar o que elas podem fazer por mim, me disponho a buscar uma solução que se apoie nessa tecnologia obsoleta. Me disponho a ver o óbvio.

Em segundo lugar, ou talvez durante todo o processo, me pergunto: mas quais são as razões ou desejos que poderiam levar um outro fotógrafo a querer se utilizar de métodos e técnicas de produção de imagem obsoletos? O que pode esse tipo de material e equipamento influenciar na sua produção que justifique essa opção? O que muita gente vê primeiro é o aspecto financeiro que pode ser um peso no momento da escolha do material ou equipamento no caso de aquisição. Um filme vencido é mais barato do que um filme dentro do prazo de validade e no nosso país às vezes essa é a única maneira de se produzir. Portanto encontrar uma razão para utilizar esse tipo de material é simples: um filme mais barato permite produzir mais com menos. Não é só isso, o aspecto financeiro tem mais significados, um filme mais barato não traz consigo tanta responsabilidade, oferece uma espécie de alívio, de tranquilidade. Oferece um convite ao risco. O
filme mais barato permite "arriscar-se" a perder a foto ou todo o filme.

O risco por sua vez tem propriedades muito interessantes, o risco quase sempre leva a uma descoberta. A produção de imagens não é em alto contraste (ou funciona ou não), há muitas áreas cinzas e várias maneiras de produzir imagens que fogem a noção vendida pela indústria. O risco presente nesses materiais quase sempre nos leva a maneiras de produzir imagens que ainda não conhecemos. Dai a maravilha de se arriscar com filme bem barato, por exemplo, e descobrir maneiras inusitadas de ver o mundo.

Outro aspecto de reaproveitar as coisas que tenham ido parar no lixo é poder contar com a ajuda de outras pessoas. Ou porque alguém guardou um lixo para você, ou porque alguém lembrou de você e disse para outra pessoa que ia jogar um bagulho fora. Ou seja, a ação de buscar algo que sirva para uma atividade artística não precisa ser uma ação isolada, outras pessoas precisam ser incluídas (tendo em mente aquelas pessoas que observam espantadas quando desmonto um scanner e depois o faço funcionar aos pedaços). Realizada em maior escala essa atitude pode ter algum efeito no
sentido de evitar que os fotógrafos saiam em busca de materiais nas lojas e comprem coisas desencessárias, refreando assim a produção industrial, de uma maneira mínima que seja e portanto diminuindo a produção de lixo.

O fato é que se é possível a produção de imagens com o que é encontrado no lixo, logo há um excedente de produção de
materiais e equipamentos para a geração de imagens no mundo. Para que isso aconteça o produtor de imagens precisa acreditar que é possível criar imagens com material reaproveitado. Essa clareza pode partir de outro produtor de imagens. Eis que ai se insere uma função didática, de espalhar essa clareza perante a técnica. Mas que clareza exatamente é essa? Para analisar essa questão, vamos primeiro começar com um exemplo de uma informação típica do mundo fotográfico: a data de validade de um filme. O que é essa data? O fabricante de filmes fotográficos cria uma emulsão, aplica sobre uma base e testa o filme produzido, chega a várias conclusões, imprime uma data sheet e embala o filme para venda.

O data sheet contem informações de como o filme se comporta, qual é sua curva característica, qual a sua sensibilidade e é isso que as pessoas compram, um filme com atributos conhecidos, testados e até certo ponto garantidos pelo fabricante. Mas o filme muda com o tempo, por isso o fabricante estipula, baseado em seus testes, qual a data limite para a garantia por ele oferecida, essa é a data de validade. Durante a vigência da validade do filme seu valor comercial é maior. Ora, o filme continua sendo filme, continua dotado de uma curva característica, por mais desconhecida que ela seja e continua sensível à luz.

A clareza que buscamos é exatamente a separação das questões mercadológicas das questões imagéticas, por exemplo, demostrar que a data de validade é apenas isso. Após esse prazo o filme continua sendo capaz de gerar imagens de qualidade, necessitando eventualmente um maior conhecimento por parte do fotógrafo (uma pequena modificação no
revelador pode ser necessária eventualemente) como compensação pelo menor valor comercial do filme. Clareza, conhecimento, valor comercial. Pensando essa relação em termos da caixa preta de Flusser: um maior conhecimento técnico por parte do fotógrafo propicia ficar mais clara a caixa preta e menores recursos em geral são gastos com programas mais novos, complexos e completos para desencobrir as imagens desejadas.

Em terceiro lugar, o fazer de fato. Não adianta catar o lixo, descobrir o que é isso ou aquilo e deixar que tudo apodreça. Tem que tentar, tem que experimentar fazer funcionar. Voltando ao exemplo do filme vencido: esse filme exige que seja feito um teste para sua utilização, mas o filme novo também, porque utilizar os tempos na tabela do fabricante significa aceitar a visualidade que o fabricante acha que se adequa ao seu trabalho fotográfico. O que siginifica então
testar um filme? Expor o filme de maneiras diferentes, revelar com reveladores diferentes, fazer algumas ampliações, olhar para elas e se perguntar: o que eu quero para o meu trabalho? Na verdade, ali se escolhe não só o filme, mas todo o processo a ser utilizado e a aparência que tal processo gera, porque isso é o mais importante, porque representa a intenção do fotógrafo. Por exemplo, existem reveladores solventes e não-solventes, conhecer as características
desses dois grupos de reveladores pode ajudar na escolha dos produtos a serem testados.

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A palavra lixo ainda é um inconveniente nesse texto, afinal vem carregada de muitos outros significados. Pensei por vezes em chamar essas coisas que reaproveito de elementos (objetos ou idéias) adquiridos de ninguém ou do lixo de alguém. Começava a surgir uma sigla muito complicada, então ficou a palavra lixo. Cheguei a pensar em "coisas quase mortas". Cheguei a pensar em respigados, que é o plural particípio passado do verbo respigar (apanhar aqui e ali as espigas caídas no chão após a ceifa), graças ao documentário de Agnes Varda entitulado “Les Glaneurs et la Glaneuse” -
inspirado pelo quadro de Jean Millet de 1857 chamado Les Glaneurs ou As Respigadeiras – que trata de pessoas que sobrevivem catando lixo na França. As respigadeiras catam os restos da colheita, que é uma
atividade prevista na lei francesa.

Qualquer indivíduo pode adentrar propriedade privada para isso sendo que deve permanecer no mínimo 10
jardas atrás daqueles que colhem para o proprietário das terras, segundo Varda. A idéia de usar essa palavra acabou ficando de lado, o filme prefere focar o orgulho de quem prefere catar do lixo ao invés de pedir ajuda. Se por um lado é interessante perceber que a França reconhece a atividade dessas pessoas (há muito tempo, a unidade de
medida jarda está ai para provar), por outro as respigadeiras modernas reforçam a idéia de que são excluídas da sociedade. Mas chame como quiser, são essas coisas que estão por ai, cujo dono já não tem mais interesse em seu uso e que acabam encontrando um caminho até mim para que eu as use.