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Infecções artísticas

Por Daniel Hora


"Al Jazari", trabalho de Davi Griffiths
Reprodução

Projetos estéticos utilizam recursos de hackers para questionar as convenções da tecnologia digital

Máquinas de construção improvisada e anárquica, programas não convencionais, práticas colaborativas de desenvolvimento, táticas de desvio, ruído e interferência em circuitos de produção e de comunicação. Esses são alguns exemplos de processos artísticos que inspiram a proposta de aproximação entre a estética e as teorias do hackeamento.

São trabalhos que se desdobram na apropriação, experimentação, expansão e subversão das tecnologias digitais e dos valores suscitados por seu uso. Em sua realização, conjugam efeitos poéticos e políticos, alterando e redefinindo o contexto histórico de uso disseminado dos códigos numéricos nos sistemas de armazenamento, partilha e acionamento da informação.

A noção de arte_hackeamento que se propõe a partir dessas operações se sustenta com base em um tema recorrente da cultura mundial contemporânea: como a diferença se forma, se manifesta, é comunicada e ajuda a agregar uma comunidade. A centralidade dessa questão se justifica porque, segundo uma perspectiva filosófica, hackear é diferir, é abstrair alternativas, latências do virtual, para então lançá-las no atual (Wark, 2004).

Ao adotarmos essa acepção abrangente, que vai além da mera funcionalidade das máquinas, os tipos de hackeamento se multiplicam, para além da programação do software ou da ruptura de códigos de segurança. Por consequência, também se multiplicam os resultados e os graus de acolhida que consagramos ao hackeamento.

Uma das opções da arte_hackeamento é surpreender os consensos que dão valor negativo ou positivo às tecnologias. Assim ocorre quando os vírus computacionais transformam-se em arte. Pois o hackeamento de códigos executáveis autorreplicantes produz um deslocamento das reações habituais ante os inconvenientes e as falhas da tecnologia.

Entre outros projetos que lidam com a programação de vírus, podemos citar “biennale.py” (2001), dos coletivos epidemiC e 0100101110101101.org, e “Ami, Virus Informatique Positif” (2008), de Ferdinand (corte)TM. Ambos se disseminam de máquina em máquina, porém não surgem com a intenção de corromper os dados das vítimas infectadas. Em vez disso, são voltados à exploração das condições de propagação em rede e ao jogo com as expectativas ante os efeitos desse tipo de programa invasor.

Esses trabalhos baseados em vírus realizam uma tática de contrapoder em uma escala cotidiana, que abala e sugere a recomposição das rotinas com as quais lidamos ao usar a computação. Seja por efeito do estímulo à reflexão causado pelo lançamento de um vírus na Bienal de Veneza, no primeiro caso, seja por conta da ilusão da troca de máquinas, produzida pela inversão aleatória das imagens de diferentes áreas de trabalho capturadas pelos clones instalados de “Ami” (amigo), o que encontramos é a diluição do aspecto factual de uma tecnologia (os vírus são algoritmos maléficos). A consequência é a abertura para outras possibilidades de uso e compreensão desses códigos.

Projetos que seguem a linha dessa arte-vírus executam processos de produção da diferença na computação e na telemática, que suscitam o confronto entre as predeterminações tecnológicas e suas constantes adequações –conforme a acepção de Jordan sobre o conceito de hackeamento (2008).

Por outro lado, na medida em que os sistemas e redes de computação se difundem em quase todos regimes de produção e comunicação, as dinâmicas sociais também se amoldam e se modulam conforme os ritmos da tecnologia, tornando-se fenômenos igualmente passíveis de hackeamento.

As implicações dessa contaminação reverberam para áreas distintas, umas mais, outras menos adjacentes ao uso das máquinas, segundo o alcance imputado à sua influência.


Outras tendências

Podemos identificar pelo menos mais três correntes de hackeamento que lidam com a diferença tecnológica e sua transferência para a esfera social. A primeira delas é o software livre e de código aberto (Floss 1), e o licenciamento flexível de conteúdos digitais se consolida como ruptura frente à lógica proprietária das regras de copyright.

Em segundo lugar, o hacktivismo se propõe como aliança da manifestação política com o hackeamento, com o objetivo de desafiar os controles do poder (Samuel, 2004).

Por fim, o remix, o faça-você-mesmo, o hackeamento de hardware e o “circuit bending” (configuração de circuitos eletrônicos para geração de sons) se afirmam como táticas de participação coletiva e imediata na (des) construção e (re) montagem anárquica dos aparatos tecnológicos.

Coletivos como Estúdio Livre, Goto10 e rede Metareciclagem promovem o uso de tecnologias livres e colaborativas em projetos artísticos. Essa tendência se sedimenta a ponto de constituir o tema específico de um festival internacional, o Make Art, evento anual organizado com base no conceito de FLOSS art, que agrega as poéticas construídas em torno do software livre e de código aberto.

Entre outros exemplos, a instalação “Al Jazari” (2008), de Dave Griffiths, apresentada na edição de 2008 do Make Art, associa a interface de um jogo eletrônico com uma linguagem simplificada que permite a programação performática, ao vivo (“live coding”).

Enquanto está em execução, o código executado na instalação é exibido dentro de balões de pensamento iguais aos das histórias em quadrinhos, que aparecem sobre as figuras de robôs projetadas em telas. As linhas de comando ficam disponíveis para a edição interativa por parte dos observadores, que se convertem em co-programadores do trabalho.

A noção de hacktivismo, por sua vez, é colocada em prática nas intervenções de coletivos como Electronic Disturbance Theatre (EDT), liderado por Ricardo Dominguez. Com o protesto eletrônico “Zapatista Tactical Floodnet” (1998), o grupo se engaja na luta do movimento revolucionário dos grupos indígenas de Chiapas contra a opressão do governo do México.

A iniciativa consiste na disseminação de um aplicativo chamado FloodNet, usado por ativistas como mecanismo para requisição de páginas inexistentes em sites como o da Bolsa de Valores e o da Presidência do país.

Nos endereços solicitados são inseridos nomes de indígenas assassinados pelas forças armadas mexicanas. As mensagens de erro geradas se acumulam nos servidores, proporcionando um duplo resultado: simbolicamente, o poder reencontra suas vítimas, enquanto, na dimensão operacional, a sobrecarga de acessos e respostas paralisa os sites atacados.

Já o remix é assumido como tática de execução e o próprio assunto do projeto “Deconstructing Beck” (1998), uma compilação produzida pelo selo musical Illegal Art e a banda Negativland, com fundos arrecadados pelo coletivo artístico ®TMark. O trabalho reúne composições feitas com samples não-autorizados de álbuns do músico norte-americano Beck, com a finalidade de estimular o debate sobre a liberdade de adoção, reuso e adaptação de amostras de obras musicais anteriores.

Por último, o hackeamento de hardware é observado na instalação robótica “Spio” (2004-2005), de Lucas Bambozzi, que inclui um aspirador de pó convertido em sistema autônomo de apreensão, processamento e transmissão de imagens.

Câmeras de vigilância dispostas sobre o eletrodoméstico transitam no espaço, gerando efeitos sonoros e visuais a partir dos dados captados. Por sua vez, os aparelhos de Paulo Nenflidio articulam luteria, escultura cinética e “circuit bending”, inserindo instrumentos e autômatos inesperados nos ambientes de fruição da arte.


Diferença e resistência

Os trabalhos mencionados acima são apenas alguns casos que podemos analisar sob a perspectiva conceitual da arte_hackeamento. Sua poética coloca em prática um jogo de dissidência que desfaz e recompõe as engrenagens dos aparatos, revolvendo seu aspecto de caixa preta à prova do estudo e da apropriação coletiva (Busch; Palmas, 2006).

Ao ampliar o acesso à tecnologia, a adoção do hackeamento como tática artística oferece uma oportunidade de resistência ante a formação de um hipotético e temido regime de hegemonia cibernética.

Essa contestação se fundamenta no valor contracultural da diferença, que a arte_hackeamento é capaz de sublinhar dentro do cenário global de aplicação difusa da codificação digital. Conforme Stiegler (2007), a contestação política requer hoje a vivência da singularidade incalculável e consistente da diversidade, possibilitada por processos artísticos e fundamentada na apresentação do imprevisto, do defeito, da lacuna.

Quando tais elementos são inseridos nas operações tecnológicas, servem como antídotos à hiper-sincronização das condutas humanas, o esgotamento do desejo e o condicionamento estético –males que Stiegler atribui à oferta excessiva de produtos propagadores do consumismo por parte do capitalismo cultural e hiperindustrial.


link-se

Al Jazari, Dave Griffiths - http://www.pawfal.org/dave/

Ami, Virus Informatique Positif, ferdinand(corte)TM - http://www.strobo.org/edition-des-multiples/oeuvres/ami/

biennale.py, 0100101110101101.org e epidemiC - http://0100101110101101.org/home/biennale_py/ e http://epidemic.ws/biannual.html

Deconstructing Beck, ®TMark - http://rtmark.com/db.html

Estúdio Livre - http://www.estudiolivre.org/

Goto10 - http://goto10.org/

Make Art - http://makeart.goto10.org/

Paulo Nenflidio - http://www.youtube.com/user/nenflidio

Rede Metareciclagem - http://rede.metareciclagem.org/

”Spio”, Lucas Bambozzi - http://www.youtube.com/user/bambozzi

Zapatista Tactical Floodnet, Electronic Disturbance Theatre - http://www.thing.net/~rdom/ecd/ZapTact.html


Referências

BUSCH, Otto von, PALMAS, Karl. “Abstract Hacktivism: The Making of a Hacker Culture”. London: Lightning Source, 2006. Disponível em: http://www.isk-gbg.org/abstracthacktivism/.

GALLOWAY, Alexander R. “Protocol: How Control Exists After Decentralization”. Cambridge, Mass: MIT, 2006. (Leonardo) http://books.google.com/books?id=7ePFlE5oo7kC&printsec=frontcover&dq=protocol+how+control&ei=LoLnSozjMJ6MzgT-8uiIDA&hl=pt-BR

JORDAN, Tim. “Hacking: Digital Media and Technological Determinism”. Cambridge, UK: Polity, 2008. http://books.google.com/books?id=ZZ1lOdUZ4wwC&pg=PA1&dq=hacking+digital+media&ei=moLnSrl4pvTKBJOG-N8L&hl=pt-BR

SAMUEL, Alexandra Whitney. “Hacktivism and the Future of Political Participation”. Thesis, Harvard University, Cambridge, Massachusetts, September 2004. Disponível em: >http://www.alexandrasamuel.com/dissertation/ .

STALLMAN, Richard. “Free Software, Free Society: Selected Essays of Richard M. Stallman”. Boston, MA: GNU Press, 2002. Disponível em: http://www.gnu.org/philosophy/fsfs/rms-essays.pdf.

STIEGLER, Bernard. “Bernard Stiegler: Reflexões (não) Contemporâneas”. Tradução e Organização Maria Beatriz de Medeiros. Chapecó: Argos, 2007. http://books.google.com/books?id=NuF0PgAACAAJ&dq=bernard+stiegler+reflex%C3%B5es&ei=O4PnSuOlIY2wzgS38u23BQ&hl=pt-BR

WARK, McKenzie. “A Hacker Manifesto”. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2004. http://books.google.com/books?id=ZuHN7tgkcFIC&printsec=frontcover&dq=hacker+manifesto&ei=WoPnSsumN5GGzgSq7eWMDA&hl=pt-BR


Publicado em 28/11/2009

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Daniel Hora

É

mestrando do Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília. Realiza atualmente o estudo "arte_hackeamento: dissenso tecnológico nas artes, no pensamento e em outros arranjos contemporâneos", projeto selecionado na categoria de apoio à pesquisa acadêmica do programa Rumos Arte Cibernética (2009), do Instituto Itaú Cultural.

A editora, Giselle Beiguelman, pede apenas que conste: "Artigo publicado na seção novo mundo da revista Trópico, em 28/11/2009. Disponível em: http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/3144,1.shl"