MutiraoFabiQueer
Publicado no Le Monde Diplomatique em 24/07/08
Queer: política sexual do noise
Fabiane Borges, Hilan Bensusan
Noise não é música. Queer não é sexo. Talvez estejamos à beira da era da pós-música e estamos querendo ver ao longe a era do pós-sexo. Mas há ziguezagues frenéticos e pode ser que até a música retorne, até o sexo retorne. Queremos isso? O noise é um deslocamento para fora das margens da história da música canônica; uma requebrada, uma saída do eixo, mas que se repete cada vez mais: o noise tem um pedigree em Cage, Boulez, Zappa, um outro em Captain Beefheart, Sonic Youth, Wunderlitzer e tem outros. O deslocamento se faz expondo matéria sonora que ficou deixada de lado pelo cânone da música; aquilo que soa amorfo ou abjeto para além do que é apenas desafinado. Os detritos da música – que têm o nome do que perturba a transmissão. Adicionar noise é uma intromissão no caminho esperado da informação: fazer ruído. Deixar as coisas roídas. Boyan Machev [1] descreve o noise como uma desorganização da vida: um agente provocador que logo se comporta como um agente infeccioso. Machev opina que o noise é a arte da desorganização e por isso mesmo é a arte da alteração, da expressão da potência e da transformabilidade. Do que parecia amorfo emerge alguma nova morfologia e, se continuamos ruindo, uma outra. Trata-se de roer a teia que vai da matéria ao instrumento e do instrumento o som. A matéria ela mesma faz som – matéria-sem-instrumentos é equipamento esquizo. Noise contamina a música e, eventualmente, vai se tornando música. A música vai ficando ruída, infestada de desorganização.
Queer é o noise do sexo. O plano, se precisarmos apresentar um plano, é o curto-circuito: não precisar mais dos órgãos sexuais, com sua velha morfologia, para o prazer. Do corpo ao órgão, do órgão ao prazer – arrancar matéria orgástica do corpo desorganizado. Mas Machev diz: a arte da alteração, da expressão da potência, da transformabilidade. O que é queer, e o que é trans, inter, a, poli, cybersexual traz as marcas da potência porque é agente infeccioso. Nem se trata de encontrar espaço para o ruído, mas de roer lentamente o sexo com partitura, o desejo como coreografia e os corpos com tonalidade fixa. E a parte mais excitante: tudo soa. Tudo é som. Cada ínfima parte do mundo tem seu próprio ruído, não necessariamente audível. Somos tecno-humanos e necessitamos dos canais de amplificação para aproximarmos nossa escuta do inaudível, da multiplicidade sonora que nos rodeia e que ignoramos. Isso é noise, isso é sexo. Democracia.
Mas tudo pode ser diferente. O queer e o noise não nos garantem liberdade por principio. Podemos imaginar o ouvido, esse órgão sensorial, crescendo no interesse de investimento capitalístico a ponto de torná-lo o território de maior especulação e investimento e aos poucos diminuir seu investimento no sexo... Isso poderia ser chamado de uma era pós-musical, mas sem fuga do capital. No entanto ainda vivemos com a imposição da ordem do progresso (harmonia) e o progresso da ordem (controle), que são valores caros mantidos pelos higienistas urbanos, sexuais e sonoros. Progresso é aumento de controle. Por essas, nem estamos tanto em era pós-sexual e pós-musical. Precisamos de mais... reconhecimento por parte de investimento de capital e por vias legais é um avanço social em um sentido e avanço de mais controle por outro. E assim vamos liberando espaços na matriz de inteligibilidade, na medida que nossas lutas sociais se multiplicam em suas formas de manifestar-se, já não sabendo bem em frente do que, já que perdemos paulatinamente a referência do espaço-para-a-manifestação. Esse carnaval ativista tem cores de arco-íris e faz festas manifestos, um grande carnaval de rua exagerando gestos e gestos.
O hermafrodita tem uma história de transformabilidade: ela é o noise, o ruído que interfere na melodia hétero. Retorcer a vida das pessoas, interferindo nos subterrâneos dos desejos
— O que você quer fazer — eu disse depois de muitos minutos com os lábios trancados, calculando, em assembléia com todos os pedaços politicamente engajados de mim.
Ela sussurrava, como se estivesse falando apenas para o meu ouvido direito, como se não quisesse que o resto de mim ouvisse. Ela disse, eu quero continuar. Eu quero. Eu quero que você não pare.
Em um impulso, desci meu rosto até seus seios, pequenos, os mamilos eretos como se apontassem para alguma coisa na minha direção. Beijei seus peitos e ela, lentamente, roçou seu pênis ereto pela minha barriga.
— Eu vim aqui ser uma mulher, ser uma mulher para você.
— Você veio como mulher hoje, outro dia você vem como, eu parei, como, outra coisa?
— Não sei, ela fez.
O hermafrodita tem uma história de transformabilidade: ela é o noise da bi-tonalidade sexual — o ruído que interfere na melodia hétero. Hermafroditas em muitos contextos tiveram um papel pedagógico: retorcer a vida das pessoas, interferindo nos subterrâneos dos desejos. Um agente provocador, agente infeccioso que não apareceu com uma intenção de dissipação, mas que modula os desejos. [2] Parte de uma revolução por contaminação, parte de uma desestabilização por introduzir o órgão inesperado — por ruído. Quando os instrumentistas deitam na ribalta, prontos para um dueto de violino e piano e esbarram em fagotes, trombones, contrabaixos, oboés, harpas, marimbas, secadores de cabelo, pratos, copos e não podem mover os dedos sem esbarrar em instrumentos que não sabem tocar — esbarram ao invés de tocar e retiram do entulho matéria sonora.
O clitóris que é pau é ruído, interrompe a informação, deforma, desinforma, reforma, transforma e inventa possibilidades súbitas, como se a interação entre os órgãos que não são mais instrumentos na mão de uma torre de controle vestida de azul ou de rosa se desse por fricção e não por plano de vôo. Pensemos na célebre pergunta de D. H. Lawrence: por que minha mão deve ser vista como sendo vassala da mente que a dirige? E agora: porque os pedaços da minha genitália devem ser instrumentos de um sistema nervoso central azul-marinho ou rosa-carmim que os sujeita? Não é que as partes dos corpos sejam autônomas, mas elas podem escapar dos controles das matrizes heterossexuais. Queer – coisa ruída, barulhenta – é uma conspiração com este fim: celebrar o que escapa.
Esquizerda se excita sempre com as novas fronteiras. Ela aprende alguma coisa com o capital – se gay virou produto, pós-colonial virou logo de música ou de cinema, trata-se de mudar a velocidade
Queer é pinto no lixo, perereca pelo mato, guitarra arrastada por uma caminhonete. [3] Trata-se de uma proliferação. Nem se trata sempre de fundir os termos da diferença sexual, mas de fazer bolinar o feminino, o masculino, como se fossem corpora prontos a serem seduzidos e desviados e postos fora do eixo: a ejaculação delicada da garota, os seios fartos com mamilos ouriçados do meu macho; cada centímetro dos corpos fazendo uma transição entre os dois lados da diferença. Não se trata de varrer a diferença sexual – ou antes as muitas diferenças sexuais – para baixo do tapete; nem mesmo de agir como se 6 bilhões de sujeitos queer já existissem. É antes tentar mobilizar o poder revolucionário do barulho que muitas vezes é tratado como inaudível. E que carrega potência de revolução. Uma revolução por aglutinação, recombinação, por desvio de rota.
Julia Serano, no seu Barrette Manifesto que aparece junto com seu Trans Woman Manifesto [4], aponta para o grau de perigo que parece conter, para os homens heterossexuais que orbitam em torno do poder, as presilhas de cabelo das meninas – assim como todas as coisas de garota. E ela diz: eu sei disso porque, como uma mulher trans, eu sou agente duplo e vivi como um rapaz a maior parte da minha vida. O perigo da bolsa, do colar e do batom não termina com o feminismo incluindo as mulheres no clube dos executivos ou dos políticos e nem com a visibilidade gay ou mesmo das mulheres pós-operatórias. E é bom que não termine, porque resistência – como qualquer potência – se dobra e desdobra no tempo. (Um heterossexual aprecia os contornos femininos de uma pica depois de estar por um tempo desejando os contornos femininos das pernas, dos quadris e dos seios da amante.)
Nada vai trazer de volta a higiene das fronteiras coloniais – entramos em um tempo de contágio universal. ? Quiçá!! O capital se insere nos tecidos subcutâneos do contágio: vende figurinos lésbicos em Haight-Ashbury, música do Congo em Tóquio, remédio canadense em Luanda, droga colombiana em Oslo. A dinâmica da esquizerda é a dinâmica da infecção nesses mesmos tecidos – ela não quer uma saúde pós-revolucionária estável e bonachona, como se tivesse alcançado a quietude e a plenitude. Esquizerda se excita sempre com as novas fronteiras. Ela aprende alguma coisa com o capital – se gay virou produto, pós-colonial virou logo de música ou de cinema, trata-se de mudar a velocidade: deixar vazar um terceiro-mundismo queer, uma música que não é música, um sexo que não tem órgãos. A esquizerda promove objetos de desejo que não podem ficar parados em uma vitrine. Nem se trata de vencer uma batalha final contra o capital – mas de cutucá-lo com uma vara curta ou com um dildo de 18 X 8.
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