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qui, 01/03/2012 - 02:15

Sobre metáforas bélicas e outras cositas más...

 

Nos últimos tempos tive a oportunidade de me encontrar com metarecs pessoalmente, numa dessas obras do acaso. Sem planejamento detalhado, roteiro de visitas ou critério objetivo na escolha de cada uma delas, a única bússola que tinha eram a vontade e o risco: estarei na cidade, quem daqui está disposto a bater um papo?; topa contar um pouco sobre sua relação com a Rede MetaReciclagem?; essa Rede tem mesmo gente em todo país?. Fui gravando as conversas no celular para transcrever aos poucos e em breve ter mais algum material bacaninha lá pro Mutirão da Gambiarra (esse nome é o antigo, eu sei, mas mutgamb não é o que mais gosto, pois é bem menos sonoro e expressivo). Outra hora contarei mais sobre esses encontros fortuitos, com a devida atenção que merecem. Por enquanto, apenas agradeço, de coração, a todo mundo que me recebeu com enorme gentileza.

O começo da conversa era sempre o mesmo – a curiosidade sobre o momento de chegada na rede. E à medida que cada um ia contando sua história, a todo instante pensava em como eu vim parar aqui. Como ainda não há tecnologia para gravar pensamentos, imagino que seja adequado compartilhar essa história à moda antiga: escrevendo-a. Afinal, as relações são feitas assim, na base da troca. E as amizades, que se constroem a partir da confiança, também partem desse princípio: se você me conta uma coisa, eu também posso te contar outra.

A primeira vez que ouvi falar da MetaReciclagem foi quando estive no Barcamp em 2007. Na época eu estava numa pós em arte, educação e tecnologia e passava muito tempo na web. Como o curso era pautado numa estrutura de ensino ainda conservadora (isto é, naquele velho paradigma de transmissão e recepção de informação, apesar do moodle e toda aquela dinâmica de fóruns que caracterizam os cursos via internet), curti a proposta do Barcamp, de um aprendizado meio no escuro. Até onde eu me lembro o evento não tinha nenhuma intencionalidade educativa, mas eu atribuí esse outro significado a ele porque expressa bem a essência do aprender - descobrir, experimentar, se abrir para ouvir e conhecer, compreender que o outro sabe tanto quanto eu, ainda que sejamos muito diferentes, e o “pior” (ou o mais difícil de aceitar): o outro sempre tem algo a nos ensinar, mesmo que a gente não queira ou perceba.

As inscrições já tinham sido encerradas, mas escrevi para o organizador André Avorio e apareci na Cásper Líbero no dia seguinte. Ao chegar e me deparar com os krafts espalhados, inscrição me pareceu uma frescura. Por que um evento que mais parece uma reunião de diretório acadêmico (na mesma hora me lembrei dos não tão velhos tempos de faculdade e suas tradições atemporais) precisaria de inscrição? Fui olhando os papéis nas portas e entrei numa das salas, com a conversa já em andamento. Me instalei num cantinho fora da grande roda, ouvindo e observando tudo com atenção. Entre outras coisas, passava de mão em mão aquele laptop verdinho que deveria estar com as crianças na escola. Naquele dia aprendi uma lição importante que só reconheceria muito tempo depois: o mundo da tecnologia tem dessas coisas – elas precisam estar envoltas em uma mistura de polêmica, ideologia e o glamour do novo para ressoarem importantes e significativas. Mesmo que nunca sejam materializadas, o simples fato de terem sido concebidas já é o bastante porque a energia que faz girar esse planeta é o barulho. O falecido Steve Jobs é um dos que personificou esse modus operandi (não gosto deste termo meio arrogante, mas não me ocorre outro agora) e foi tão eficaz que influencia até quem tem absoluta certeza de que está em outro mundo, bem mais “livre”...

Como eu não sou lá muito afeita à moda e, por várias vezes, ela me desperta indiferença, repulsa ou birra, olhei de longe o tal laptop verdinho com total desprezo, sem nenhuma vontade de colocar a mão e experimentar (minha porção aquariana já tinha me levado ao evento, mas tirou um cochilo nessa hora). Resolvi me concentrar na fala das pessoas, dentre as quais estava o efe (naquele dia, Felipe Fonseca) e seu alerta para a necessidade de desconstruir as metáforas bélicas que povoam o mundo (público-alvo com pessoas a serem atingidas eram algumas delas). Ao longo do seu discurso, confesso que me distraí um pouco, dada a eloquência que me confundia: como alguém que se expressa de modo leonino poderia ter uma visão analítica tão aguda e crítica do mundo, já que essa é uma característica tipicamente virginiana? Pralém da obviedade do fato de humanos serem bichos, cujo instinto permite reconhecer rapidamente os seus iguais da subespécie astrológica, eu também trabalho com educação, muitos eventos, palestras e “quetais”. Nessa década e meia de atuação na área venho treinando a perspicácia de relacionar o que leio e ouço com o que vejo acontecer na prática. Como diz uma colega advogada, “no contrato eu posso colocar o que você quiser porque o papel aceita tudo” e aí eu sempre me pergunto: o que realmente estamos dispostos a bancar nesse universo de possibilidades? Em suma, a questão é o limite entre teoria e prática, o que se faz e o que se diz, o que se imagina e o que se realiza, o que se quer ser e o que se é.

Terminei, então, de ouvir as falas de cada um e ali fiquei até que a roda da desconferência terminasse. O fato de estar em eventos com frequência tem o “desprivilégio” de você não se deixar levar imeditatamente por qualquer ideia bacaninha que parece interessante. É preciso um algo mais pra eu poder me encantar, pois o que não falta é gente com boas ideias e ótimas intenções pro mundo melhorar. Aliás, nunca vi ninguém que não achasse que aquilo que faz é para transformar esse lugar onde a gente vive. O Nelson Rodrigues já dizia que toda unanimidade é burra, mas também foi ele quem disse que os medíocres são fundamentais. E, nós, pobre mortais nesse mundão de meu deus, ficamos com a difícil tarefa de discernir. Como a roda logo se desfez, não tinha muito tempo para devaneios e decidi que, de tudo o que acabara de ouvir, a MetaReciclagem merecia o meu benefício da dúvida.

Abrindo vários parênteses agora... outra coisa que considero muito importante (não só no trabalho, nos estudos, nas relações, mas na vida) é o quanto uma pessoa, ideia ou vontade têm de verdade em si. Não que eu espere encontrar A verdade (não acredito que haja apenas uma) ou saber se as pessoas estão falando A verdade (porque elas sempre acham que estão, ainda que seja uma verdade temporariamente necessária até que se possa dizer ou se encontre outra melhor e mais verdadeira), mas é uma questão de princípios (em tempo: princípio é também sinônimo de começo, ou seja, de onde se parte). Até hoje só encontrei um jeito de empreender essa busca: conversar com as pessoas ao vivo, escutando, olhando no olho, frente a frente. Por isso, fui lá e perguntei pro efe algo do tipo: como faço para saber mais? Ele me respondeu: entra no site da MetaReciclagem e me falou o endereço. Percebi que naquela hora não seria necessário prolongar a conversa. A verdade do discurso da roda já tinha se traduzido ali e duas frases foram suficientes para entender que efe acreditava mesmo no que dizia, sem intuito de convencer o interlocutor a qualquer custo, e não era da boca para fora. Então o agradeci, voltei pra casa e fui consultar o tal site.

Achei tudo muito confuso, difícil de localizar as informações relevantes e alguns arquivos que queria ver não abriram. Mandei um e-mail para o efe e ele sugeriu que eu fosse no Espaço Gafanhoto no dia seguinte para conversarmos melhor. Uma dessas interpéries da vida impediu que eu aparecesse e quase um ano e meio depois, com as urgências melhor administradas, as conversas por e-mail voltaram a acontecer e efe recomendou que eu me cadastrasse na lista de discussão da Rede MetaReciclagem.

Logo no início achei que poderia colaborar com algo que pudesse melhorar o site. Imaginava que nem todas as pessoas teriam a mesma paciência que eu, de querer aprofundar a pesquisa e as relações com a Rede antes de concluir à primeira vista que MetaReciclagem pode ser uma mentira. Uma parte é mesmo. Mas uma coisa é ser a mentira divertida, leve, despretensiosa e quântica, a ontologia da ficção. Outra coisa, bem diferente, é ser uma mentira ética. Talvez por conta daquelas preocupações com a(s) verdade(s), é que considero isso uma coisa bem grave. Mesmo pra mim, que venho do campo das artes e dou enorme valor às questões estéticas, admito que as éticas são prioritárias porque são elas que deveriam regular a vida social. O que eu ainda não descobri é como chegar nelas se, bem antes, as questões morais, as regras e os tabus ganham enormes proporções, eclipsando o que realmente importa.

Mais difícil ainda é fazer essa operação na lista de discussão desta Rede. Quase todo mundo que fala é tão convicto de sua disposição para abertura e defesa da liberdade, parece ter tanta certeza de que é imune aos tabus tradicionais, que, diante de tantas regras e moralismos disfarçados neste ambiente, eu não sei mais onde está o espaço para as novas ideias. A simples possibilidade da Rede MetaReciclagem ser julgada da mesma forma (por diversas vezes imprudente) que faz com tudo aquilo que está longe dela (sejam as pessoas, instituições, governos, partidos, empresas, iniciativas informais, outras redes, etc.) é algo que sempre me leva a pensar melhor antes de adotar determinados pontos de vista. O cuidado se repete quando vejo os mesmos julgamentos instantâneos serem dispensados aos próprios integrantes da Rede que se atrevem a compartilhar suas boas ideias e intenções na lista de discussão. As opiniões frequentemente desencorajantes surgem como se fossem disparadas por um gatilho, na velocidade de fuzis. Em pouco tempo se instaura uma batalha cujo objetivo parece ser eleger um vencedor para a discussão. Encontrar argumentos para comprovar aquilo que já se sabe e acredita parece valer muito mais do que debater ideias e ter disposição para mudá-las, inclusive as suas próprias. Daí a trédi morre do mesmo jeito que nasceu: condenada a priori. Nunca viveu, portanto. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que há muitos juízes na lista, quase ninguém parece acreditar no popular princípio básico da justiça: todo mundo é inocente até que se prove o contrário.

Dia desses foi um daqueles em que eu gostaria de ter sido mais eficiente na minha proposta inicial de melhorar o site para poder me descadastrar da lista de discussão sem a sensação de estar abandonando a Rede ou desistindo de fazer algo por ela. Mas a cada vez que vejo alguém ser lembrado de que a porta da rua está logo ali ou sair sem que outras pessoas sequer lamentem, me pergunto o que significa realmente aquela história de “tecnologia é mato, o importante são as pessoas” (que foi dita pelo dpadua e um monte de gente adota como assinatura). Se meu lado nômade é capaz de compreender que ir e vir é algo natural na vida e é também um direito-desejo fundamental, por outro, tenho a impressão que ninguém tem a menor importância para esta Rede. É uma espécie de “tanto faz”, que soa como soberba, pois na entrelinha está o fato dela continuar existindo porque suas crenças e premissas são maiores do que a possibilidade de se deixar afetar radicalmente por quem passa. Em outras palavras, a força do coletivo se sobrepõe à do indivíduo da mesma forma que em outros agrupamentos sociais bem convencionais (a gente, um aglomerado de pessoas físicas, é tão diferente assim de um partido político ou instituição e tem discurso próprio?). Eu não sou uma estudiosa de teorias das redes, mas alguém mais entendido poderia me ajudar a compreender se é tudo isso mesmo que dizem por aí. Sem jargão acadêmico ou falas prolixas em forma de redemoinhos que só levam a elas mesmas e ao próprio autor, de forma simples, para qualquer desavisado que cair aqui na leitura desse post poder sacar algo, por favor.

Ajudar a ganhar o Mídia Livre não foi suficiente para que o site virasse outra coisa talvez porque o que precisamos é mexer nos modos de se relacionar da rede metarecicleira. Desconfio que ainda não temos tecnologia para isso e suponho que as demais tecnologias que utilizamos e criamos abalam muito pouco essa dinâmica. Acreditava que investir na pluralidade de histórias metarecicleiras por meio do mutirão poderia ser algo revelador e muito interessante, o que, de fato, tem sido. Insuficiente, porém, para gerar movimento e interferir de forma significativa neste grande ecossistema em que me envolvi de forma absolutamente voluntária. Por minha conta e risco desde o início, eu sempre soube. Ninguém precisa me lembrar que posso sair a qualquer hora porque não esqueço. Não sou do tipo que diz “eu te amo” rapidinho e para qualquer um. Até topo dizer “abraços do bando” de vez em quando. Mas o “pode ir que eu nem ligo” já é demais, ofensivo, na minha perspectiva feminina da vida.

Assim que entrei na lista de discussão, também me cadastrei no antigo site do mutirão, aquele com logo preto e rabiscos. Neste mesmo período de iniciação, efe me transformou em editora, ainda que eu não soubesse bem o que isso significava. Sigo interessada nas narrativas metarecs e com energia para sair por aí coletando histórias de quem quer que seja. Minha única exigência é que seja ao vivo porque eu não quero nenhuma tela atrapalhando a visão. Eu não sei bem o motivo, mas olhando no olho e de frente, as pessoas se transformam em gentes gentis. Toda aquela aura pesada da lista de discussão se liquefaz e em nada parecemos com ogros, sem sensibilidade e delicadeza, tal como nos apresentamos ali, talvez por pura força do hábito ou receio da não-aceitação. Reclamar das reclamações alheias não me agrada, ao contrário, só irrita a mim mesma e aos outros. Permanecer em silêncio é, até certo ponto, consentir. Deve haver um caminho em que seja possível usar muito bem o direito à expressão, que já nos foi negado em história recente desse país, sem precisar gritar, banalizar o poder da palavra ou a necessidade contemporânea de emitir opinião definitiva sobre toda e qualquer coisa, inclusive sobre as que conhecemos bem pouco. Eu não sei bem para que serve a nostalgia, mas se eu pudesse voltar ao começo, preservaria minha disponibilidade de observação e escuta que me trouxe a essa Rede e também a emprestaria para quem quisesse usá-la de quando em vez. Se eu puder fazer um pedido para seu futuro, que seja a substituição da predisposição ao combate que vive em cada um de nós para fazer acordar o desejo pelo debate.

Há promessas de um encontro em Ubatuba daqui a poucos meses. Perto dos dez anos do Projeto Metáfora, que deu origem à esta Rede, para quem não sabe. Logo nos meus primeiros meses de vida nela, participei de um installfest lá no Parque da Juventude, depois veio o encontrão na campus party e outro lá no bailux, além de muitos outros que me permitiram encontrar muitas verdades e pessoas bacanas. Tenho certeza de que se não fossem eles, jamais teria permanecido. Certamente teria desistido toda vez que li algo absurdo ou pouco generoso na lista de discussão. Nessas horas sempre penso que o mundo pode acabar naquele átimo e futuramente um arqueólogo vai localizar fósseis digitais, concluindo que sou exatamente aquilo por ser membro do mesmo grupo. Mas como eu sei que o contato via internet será inevitável, queria fazer um segundo pedido como presente de aniversário para esta Rede: que a gente consiga romper não só com as metáforas, mas também com as atitudes e impulsos bélicos.

E como em todo conto de fada temos direito a três pedidos, por enquanto vou guardar o terceiro. Nessa jornada de transformar o mundo a gente pode precisar dele num momento decisivo. Por ora, sem ajuda dos deuses ou qualquer truque de magia, vamos usar nossa própria energia e, ao menos, nos esforçar para sermos alguéns melhores...  

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