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qua, 23/02/2011 - 02:51

Ponte etérea: Santarém-Holanda

No piquenique no Parque do Ibirapuera, no encontrinho do Mutsaz Outono do ano passado, conheci a Ellen. Vindo da Holanda, já tinha dado uma boa volta por essas terras e conhecido a Casa Puraqué, no Pará.

A minha curiosidade e a vontade de ir a Santarém pra olhar com mais calma o que rola por lá já tinha sido despertada no ano retrasado, durante o Encontrão Metarecicleiro na Campus Party, com o breve olá do Gama. Na falta de uma oportunidade concreta de ver tudo bem de perto, aproveitei a experiência da Ellen pra reavivar o gostinho de mistério.

Conversas outras rolaram e nunca passaram perto daí, até que resolvi retomar o texto que ela havia publicado em inglês no mutsaz. Achei que traduzi-lo e juntar com algum depoimento ou imagem dos puraque@anos seria bacana. Faria uma pequena costura de lugares, vontades, universos e ações aparentemente desconectados. Um desses encontros bem desencontrados, tão comuns no universo metarecicleiro e sua multiplicidade de hyperlinks e nexos pouco evidentes.

Enquanto espero pelas vozes e olhares puraqueanos, fico com o da gentil visitante:

 

 

Geeks amazonenses e ativismo social em Santarém
 

Na metade da minha pesquisa sobre apropriação de tecnologia alternativa em Santarém, Pará, eu percebi que de fato algo mudou aqui. No decorrer dos últimos oito anos, redes de ativistas sociais se expandiram pela cidade. Conduzidos principalmente por um grupo de ativistas midiáticos, estas visam à apropriação de tecnologia alternativa e construção da cidadania por toda a região amazônica.

O catalisador por trás disso tudo é o Puraqué. O puraqué é um peixe que vive no rio Amazonas e causa um choque elétrico quando tocado. Eles adotam este nome uma vez que pretendem despertar as pessoas por meio de um choque de conhecimento
 

Seu principal objetivo é a transformação através da apropriação de tecnologia alternativa. Cerca de oito anos atrás, quando começaram seu projeto, foram os primeiros que trouxeram software livre para a cidade. Para eles, o aprofundamento e um meta-conhecimento da tecnologia possibilita aos novos usuários fazer algo concreto com a tecnologia.
 

Nós queremos contaminar pessoas com o “vírus da Cultura Digital” e com a filosofia do software livre, porque durante a revolução do conhecimento o computador se tornou a ferramenta básica que concentra todos os meios de produção multimídia. Além disso, o computador é uma ferramenta incrivelmente poderosa para o aprendizado, comunicação, troca de ideias e para compartilhar informações. As pessoas precisam entender que de outra maneira nossa sociedade nunca se desenvolverá do modo como queremos. O que nós devemos destacar aqui é que enquanto estivermos submetidos ao processo predatório (mineração, desmatamento, soja) traremos mais e mais miséria para nossa região.1


Eles estão cansados de ser explorados pelos recursos que a área contém e querem que o conhecimento se torne a principal característica da região. Conhecimento em tecnologia, mas também a filosofia do software livre numa sociedade capitalista e a consciência sobre os danos ambientais que o lixo eletrônico causa. Portanto, por meio da “contaminação” e educação dos outros, o conhecimento aumentará exponencialmente por toda a região.
 

Uma das coisas que eu descobri e que me interessa particularmente é como eles se mantêm sem qualquer renda significativa. Todos trabalham voluntariamente e dependem das doações de equipamentos usados feitas por empresas ou pelo governos para continuar seus projetos. O que significa que a falta de recursos dificultaria as atividades. Logo, eles oferecem (freqüentemente como voluntários) workshops e cursos e aplicam sua metodologia em escolas públicas com salas de informática (nem todas têm tais laboratórios) e nos Infocentros (centros computacionais implementados e financiados pelo Navegapará, um projeto do governo estadual do Pará). Deste modo, eles recorrem a projetos top-down que são sustentáveis (especialmente em escolas públicas, já que as eleições podem colocar em risco a existência destes projetos) e as hackeam para fazê-las adotar sua metodologia e ideologia, conseqüentemente passando-as aos seus alunos.

 

Isto explica porque os Infocentros de Santarém trabalham de forma diferente, por exemplo, da capital Belém. Os puraquean@s me asseguraram que eles já treinaram mais de três mil pessoas nos últimos oito anos. Nos dois últimos anos a equipe consistiu de aproximadamente cinquenta pessoas. Recentemente o grupo central do Puraqué encontrou trabalhos na área de TIC para todos eles, a maioria como monitores nos Infocentros. Obviamente estas pessoas têm um conhecimento aprofundado em tecnologia, uma vez que aprenderam princípios de programação usando software livre, tendo feito muita MetaReciclagem e passado por um intensivo processo de aprendizagem. Diferente do Belém, em Santarém os monitores ensinam aos usuários dos Infocentros os princípios básicos de tecnologia open source por meio de um curso básico de informática e um diálogo socio-político sobre tecnologia. Hoje, vários monitores dos Infocentros in Santarém estão planejando oferecer um curso de informática avançado também. Isto significa que quem quiser pode levar seu conhecimento além de usar Orkut e MSN.

 

Em vez de visitar os Infocentros para o uso livre dos computadores e Internet, é preferível ter um curso básico. Durante algumas aulas de informática básica para crianças e idosos, eu me dei conta de como é importante ter um pouco de conhecimento sobre como usar as TICs, como funcionam e em quê usá-las. Especialmente para aqueles que são tímidos, inseguros e têm medo da tecnologia. Isto é, são freqüentes os casos de mulheres mais velhas, pessoas que permanecem encarando suas telas sem fazer nada, já que muitas vezes costumam não tocar ou fazer qualquer coisa sem permissão. Elas temem fazer coisas erradas ou danificar o equipamento. Ou ainda elas têm medo de tecnologia em geral, pois não sabem como lidar com isso. Isto significa que, sem um curso, elas não entrariam num Infocentro ou cybercafé, porque, primeiro, elas não sabem como usar a tecnologia, e, segundo, elas não sabem em quê utilizá-la. Elas não têm ideia do que fazer com algo que parece tão natural para nós, como por exemplo o Google Talk. Elas me perguntaram quando mostrei como usá-lo: “Mas o que eu devo dizer?” ou “Devo ser formal ou mais informal?”, até mesmo quando elas batiam papo com seus colegas de curso.
 

Além disso, muitos dos professores de outras iniciativas de inclusão digital, como Casa Brasil e o Pontão de Cultura Digital Tapajós – projetos do Ministério da Cultura sediados em várias cidades do país – se juntaram ao Puraqué e são treinados por ele. Portanto, o Puraqué garante um emprego e um salário para estas pessoas quanto à expansão de sua ideologia e metodologia através da região. Cada vez que um novo curso começa, a primeira aula explicará detalhadamente porque e como usar software livre. Somente após as primeiras aulas introduzindo a filosofia do software livre, eles começam a aprender como usá-la de fato. Aqueles que não estão interessados nesta história e querem apenas usar a Internet não continuarão o curso. Isto significa que aqueles que eventualmente ficarem e concluírem o curso, abraçam a filosofia e, portanto, estão mais propensos a difundi-la. Portanto, o que é sustentável, não é tanto o projeto atual, mas sua metodologia que se expande cada vez mais na região.
 

Concluindo: o que me impressiona mais até agora é que, na verdade, as pessoas passam por uma transformação social. Não porque experimentam o acesso às TICs, mas porque aprendem sobre ela e seu uso as estimula a perseguir seus sonhos ou, simplesmente, ter sonhos. Isto porque as ações focam principalmente os grupos marginalizados, muitas das crianças vivem em situação de pobreza e elas não são encorajadas a continuar estudando depois do ensino médio, o trabalho físico desgastante ainda é freqüentemente mais valorizado que uma carreira em TICs. É esperado que as meninas casem cedo e tenham uma família. Muitas não terminam o ensino médio porque engravidam e muitos garotos acabam em gangues e no tráfico de drogas. É claro que não escolhem essa vida e os cursos no Puraqué permitem que eles percebam que podem fazer algo de fato, que eles têm talentos, que conhecimento é valioso e que podem usar a tecnologia de forma profissional. Isto resulta em muitos dos novos puraquean@s estudando na universidade federal e estadual, em muitas das vezes em áreas relacionadas a TI. Entretanto, a melhor prova e o efeito deste conhecimento e conscientização é a diferença que eu percebi na autoestima entre pessoas que estiveram envolvidas neste projeto e as que não estiveram, especialmente quando converso com vários santarenhos sobre suas experiências. Uma ex-puraqueana me contou que não conversaria comigo antes de começar a freqüentar o Puraqué, pois sentiria uma grande distância entre mim e ela, por ser tão tímida. Ao passo que aqueles que não têm uma experiência como esta, permanecem vivendo na ignorância e aceitando a desigualdade social porque não têm meios para resistir. Ex-puraquean@s agora são pessoas (às vezes muito jovens) que sabem o que querem, são autoconfiantes e desejam aprender mais. Pessoas que de fato perceberam que têm potencial.

1 Entrevista com Dennie Fabrizio em “A rede”, 08/02/2010. Link visitado em 12/05/2010.

 

 

 

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