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O Fenômeno Shanzhai
Original (em inglês) em http://shanzhaier.com/2010/07/29/the-shanzhai-phenomenon/
"Shanzhai" (pronunciado "shan-djai") é o que nós chamamos de "ching-ling" ou imitação de produtos famosos por fábricas Chinesas, como o HiPhone ou iPed, e literalmente significa "montanha-fortaleza" mas se refere a uma caverna ou esconderijo, sendo uma alusão à lenda de Song Jiang, uma espécie de Robin Hood chinês.
Ao contrário da crença de que shanzhai é simplesmente cópia ou pirataria, eu defendo que shanzhai é essencialmente uma maneira de desenvolver produtos em uma realidade onde capital e mercadorias podem ser livremente movidos através do mundo, mas os produtores estão estritamente contidos por fronteiras. Neste ambiente, empreendedores no lado "em desenvolvimento" da fronteira (ou seja, Brasil, China, Índia, etc...) sabem que é impossível competir com marcas do outro lado do muro como Apple, HP, Nike e Adidas. Contudo, como eles têm acesso aos mesmos recursos "base" das grandes marcas (ou seja, componentes off-the-shelf prontos para uso, mão-de-obra e equipamentos de fabricação), eles podem produzir um produto similar, exceto a marca e design.
No contexto tecnológico, shanzhai representa o talento de DIY de garagem (ou fortaleza ou caverna), estritamente focado em produção rápida e necessidades locais, e por outro lado subvertendo a estratégia de marca e marketing das empresas estrangeiras. Eles têm uma sofisticada habilidade técnica (note que alguém não pode copiar o iPhone simplesmente olhando o produto) assim como conhecimento das necessidades de mercado locais, e portanto eles podem "hackear" as forças de mercado pegando uma carona no buzz criado em torno de uma marca.
Shanzhaistas têm o mesmo espírito dos hackers das antigas que admiramos no ocidente. Gente como Steve Jobs, Steve Wozniak, Richard Stallman e Linus Torvards desafiaram o status quo, o que resultou em avanços como a Internet, PCs e, é claro, também o iPhone. É comum o argumento de que shanzhaistas estão agindo fora da lei, no entanto este argumento se limita à perspectiva da propriedade-intelectual. Lembre-se de que esta é a conseqüência do tal do "desafiando o status quo", como por exemplo quando Steve Jobs e Steve Wozniak produziram blue boxes que permitiam ligações DDD grátis antes da Apple nascer (veja o termo "phreaking").
Sobre o argumento de que shanzhai causa prejuízo para as empresas que criaram os designs originais e investiram em suas marcas, eu tenho uma forte suspeita (apesar de ser o primeiro a admitir que não tenho evidências científicas) de que estes produtos não afetam diretamente o mercado do produto original, simplesmente porque ambos os produtos são criados para dois segmentos de mercado completamente diferentes. É difícil (e até engraçado) imaginar alguém em qualquer lugar, até mesmo na China, comparando um iPhone e um HiPhone lado-a-lado tentando decidir qual comprar. Consumidores compram HiPhones precisamente por não terem condições de comprar um iPhone original, e shanzhaistas conhecem o seu público-alvo muito bem: Por exemplo, o HiPhone suporta dois chips (SIM cards), assim o usuário pode ter dois números de celular ao mesmo tempo: Um para o trabalho e outro para chamadas pessoais, ou mesmo dois números em duas cidades diferentes. Isto pois shanzhaistas sabem que seus consumidores normalmente tem um número para sua pequena ou micro-empresa, e outro número para a família; e para eles roaming é muito caro, portanto eles usam dois chips em duas cidades diferentes. Por outro lado, o consumidor do iPhone original pode muito bem pagar roaming, e eles têm outras necessidades como sincronização de contatos e calendários que apenas o iPhone original suporta. Estes consumidores sequer consideram comprar uma cópia mais barata, e escolhem diretamente o iPhone. Eles podem até comparar um iPhone com um Nokia ou Samsung, mas não um celular shanzhai versus um original, precisamente porque eles querem características que só o original possui -- O status da marca sendo uma delas.
Aqui está um exemplo de shanzhai não-tecnológico que demonstra mais claramente o poder do status da marca: Onde moro (em Shenyang, no nordeste da China), Adidas não é vista como uma marca esportiva mas sim como um símbolo de status. Por exemplo, é muito comum ver gente entre 20 e 30 anos de idade "fantasiada" de Adidas da cabeça aos pés em restaurantes e KTVs (karaokês). Aqui, Adidas não é considerada uma marca de esporte em si, mas uma marca de estilo e moda como o The Gap por exemplo (de fato, eu raramente vejo pessoas usando Adidas praticando esportes, pois produtos Adidas são muito caros para serem sujos ou suados). O interessante é que estas mesmas pessoas absolutamente têm acesso ao shanzhai Adidas, e eu até já vi uma jaqueta de lado-duplo com Adidas de um lado e Nike do outro! Mas, acredite se quiser, eles preferem comprar o original, e não só isso: Eles preferem o original da loja oficial da Adidas! Eu conversei com diversos amigos que confirmaram este fato, e eles justificam que os consumidores sabem muito bem distinguir os pequenos detalhes de um produto original Adidas, então por razões de status eles preferem poupar dinheiro e comprar um original Adidas "bom" ao invés de dez falsos (note que "bom" aqui não tem nada a ver com qualidade em si, mas sim com status). Portanto, eu pagaria um mico enorme se eu aparecesse em uma festa com a minha fantástica jaqueta Adidas/Nike...
Pessoas que não têm poder aquisitivo para comprar um original Adidas compram sim o shanzhai. Mas ambos, o consumidor e o produtor, sabem muito bem que a razão é simplesmente poder aquisitivo, e não uma razão obscura do tipo "você está me vendendo uma camiseta pirata". Por causa disto, é difícil defender o argumento de que Adidas (ou Apple) está perdendo vendas por causa do shanzhai, pois os consumidores de shanzhai não comprariam o produto original de qualquer maneira.
Eu suspeito que shanzhai é não apenas um fenômeno Chinês, mas algo a ver com a realidade dos mercados emergentes, pois tenho observado tendências parecidas no Brasil. No Brasil temos o conceito de gambiarra, que acredito não refletir exatamente o significado do shanzhai, que tem uma conotação de "fora-da-lei" mas do lado do "povo". Gambiarra, por outro lado, tem um sentido de improviso, que o termo shanzhai não reflete: O HiPhone, por exemplo, é um produto tecnicamente bem produzido e acabado. Do lado social, acredito que shanzhai é uma evolução da gambiarra: O gambiarrista (se podemos chamá-los assim!) usa materiais reciclados e tem um espírito de fazer algo funcionar com os recursos disponíveis no momento. O shanzhaista começa com um projeto, usa componentes novos (muitas vezes os mesmos componentes dos originais) e tem acesso a uma linha de produção -- E algumas vezes a fábrica que produz os originais de dia é a mesma que produz shanzhai à noite. Portanto, o shanzhaista não só "remixa" como o gambiarrista, mas também tem a capacidade de produção em massa.
Concluindo, como alguém interessado em participar nestes mercados emergentes (ou países em desenvolvimento, ou mercados de crescimento, ou BoP, ou qualquer seja o termo da moda), nós temos que reconhecer que o modelo ocidental que recompensa propriedade intelectual claramente não funciona neste ambiente. Temos que entender este fenômeno e encontrar modelos de negócio que funcionam neste sistema. Em outras palavras, precisamos virar laowai-shanzhaistas!
Mais sobre Shanzhai:
Shanzhai no Wikipedia:
http://en.wikipedia.org/wiki/Shanzhai
Tech Trend: Shanzhai, Bunny's Blog
http://www.bunniestudios.com/blog/?p=284
Imitation Is the Sincerest Form of Rebellion in China, The Wall Street Journal
http://online.wsj.com/article/SB123257138952903561.html
Shanzhai, Copycat design as an open platform for innovation, IDEO
http://patterns.ideo.com/issue/shanzai/
Shanzai.com, um blog sobre novos lançamentos de shanzhai
http://www.shanzai.com
Comentários
notícias direto do front
Super!
Fiquei curioso quanto ao ritmo que você vivencia aí. Como vc menciona tem a realidade da mesma fábrica de dia estar na produção oficial e à noite no shanzai. Vc sente numa corrida permanente? Consegue ver alguma coisa da cultura local que minimiza os impactos dessa velocidade, dessa produtividade toda? Como vc imagina esse local daqui a 50 anos?
ahhh, assinei o teu blog pra continuar acompanhando.
sucesso!
Uma nota: As fábricas de
Uma nota: As fábricas de eletrônicos normalmente ficam no sul, em Shenzhen. Eu moro em Shenyang, no nordeste.
Sobre a "corrida permanente", nós estrangeiros vivemos isso na nossa cara: Lojas abrem e fecham no espaço de uma semana, e a cidade inteira parece estar em construção. Cidades como Pequim ou Xangai já estão bem desenvolvidas, mas cidades como Shenyang ainda estão em constante desenvolvimento. No entanto, não sinto este estado de "corrida" nas pessoas. Eu acho que o lance é mais desespero do que pressa. Além disso, o pessoal que alavanca essa produtividade toda são os migrantes, que não tem direitos nem suporte fora dos seus locais de origem (procure "hukou" na wikipedia ou google).
Em 50 anos eu sinceramente acredito que a China ocupará o lugar dos EUA hoje, não no sentido imperialista (Iraque, etc...) mas sim como uma potência cultural e econômica.
shanzhai
valeu pelo texto, felipão. eu te perguntaria ainda sobre duas coisas: se tens alguma ideia da adequação dessas fábricas de shanzhai a padrões de RoHS e alguma preocupação com o descarte desses materiais; e se conheces alguma iniciativa que tente aproximar o mundo shanzhai do ideário de licenças abertas - o que me parece um movimento com um potencial tremendo para o desenvolvimento de hardware livre...
É verdade, não analizei
É verdade, não analizei shanzhai no contexto ambiental. Quando disse que shanzhai era uma "evolução" da gambiarra, estava me referindo ao contexto social, pois shanzhai é gambiarra com poder de concorrer com as grandes marcas. No entanto, duvido que shanzhaistas estejam pensando no impacto ambiental, já que para ter algum lucro com os preços tão baixos de venda, eles tem que cortar o máximo possível.
Por outro lado, a maior poluição e despejo de subprodutos tóxicos é gerada pela fabricação dos componentes em si, que são normalmente produzidas por empresas de grande porte (Kingston, Asus, Foxconn, etc...), e essas empresas são obrigadas a seguir padrões ambientais (não sei se é o RoHS, mas provavelmente algo parecido criado pelo governo chinês). O governo está pegando pesado em fábricas, pois a China tem um problema sério de poluição. Fábricas shanzhai apenas montam os componentes, então não acredito que elas sejam grandes poluidoras.
Sobre o descarte de materiais: O grosso do e-waste na China não é gerado internamente, mas sim por material "reciclado" enviado ilegalmente de países "desenvolvidos". Aqui na China tudo é reciclado (na verdade reusado), não por preocupação ambiental, mas sim por necessidade. Aqui existe um sub-mercado enorme de produtos e componentes usados e antigos. No próprio prédio onde trabalho, o andar inteiro abaixo do meu escritório só vende computadores e peças usadas. Isso é muito comum na China -- Ninguém é louco de jogar equipamentos eletrônicos (computadores e celulares) no lixo. Isso é coisa de países "desenvolvidos", pois lá a mão-de-obra é mais cara que produtos novos, e vale mais a pena comprar um novo do que consertar um antigo.
Sobre open source hardware e shanzhai, parece que este cara aqui está tentando algo:
http://www.scribd.com/doc/23862635/Shanzhai-VS-Qi-Inside-Making-Legal-Op...
(ironicamente, o Scribd é bloqueado na China)
Um outro fato fascinante é que os produtos shanzhai muitas vezes usam free software como Android e Linux. No entanto, não acredito que seja movido por ideologia em si, mas estritamente por praticidade: Eles poderiam usar qualquer outro OS (já que eles não se preocupam com a pirataria), mas free software significa que eles podem alterar o código fonte. O sonho dessas empresas de shanzhai é virarem legítimas (ou seja, criarem seus produtos originais e seguir propriedade intelectual), e o fato delas usarem free software limita o risco delas caso virem fábricas legítimas.
É interessante ver que free software perde o significado em um ambiente onde a propriedade intelectual não é seguida. No mundo shanzhai tudo é free! :)
free
"É interessante ver que free software perde o significado" - não necessariamente. Talvez seja a maneira mais interessante para os anglófonos entenderem a diferença entre "livre" e "grátis". Como comentaste: eles usam free software não porque é grátis (já que tudo é grátis), mas porque podem alterar o source (é livre). Faz sentido, e bem alinhado com o que existe de mais importante no software livre...
shanzhai
legal essa apresentação do rejon. colei lá na tag shanzhai nos links.metarec:
https://web.archive.org/web/20120424170845/http://links.metareciclagem.org:80/tags.php/shanzhai