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seg, 18/01/2010 - 02:45

Desenho-desejo, ou a brincadeira de fazer projetos

Há quem diga que jogo e MetaReciclagem, ou vice-versa, têm muito a ver. Sem nenhum intuito de atrapalhar antigas relações, tomo a liberdade de falar sério sobre a “brincadeira” desta vez. Venho do campo da educação e nesse universo, que pode incluir estudos sobre o lazer, a recreação e as crianças, alguns fazem uma diferenciação entre jogo e brincadeira.

Enquanto o jogo busca um vencedor, tem regras (muitas vezes levadas extremamente a sério com um agente externo para fiscalizá-las), um clímax, certa previsibilidade nas consequências e um final determinado, a brincadeira carrega um potencial de liberdade maior. Pra começar, dizem que a principal diferença entre os dois é que ela não tem ganhador e um fim demarcado, acontece enquanto houver disposição das pessoas envolvidas e interesse por continuá-la. As regras podem ou não existir, as modificações são possíveis a qualquer momento e por ter um grau de formalização menor ou inexistente, suas consequências são absolutamente imprevisíveis exatamente por estar desvinculada de padrões.

Por todas essas características, eu acho que ela combina com projeto, uma palavra abrangente utilizada pra muitas coisas hoje em dia: as que a gente efetivamente faz, as que a gente quer fazer e até mesmo as que nunca serão feitas provavelmente por ninguém.

Numa certa medida, qualquer coisa é um projeto em potencial. Aqui, por exemplo, tanto um esporo ou conectaz em funcionamento, ou uma ideia aparentemente simples podem alcançar a condição de projeto, assim como o texto que descreve as intenções e ações para colocar tudo em prática. É nessas duas últimas possibilidades que eu quero me concentrar hoje, vamos ver se a minha dispersão deixa!.

Já disse no post anterior que todo mundo é igual: tem ótimas ideias. E eu realmente acredito nisso! Mas sou do tipo que não se contenta em ter ideias apenas, curto testá-las pra ver se elas são boas mesmo, sabe?. Elas precisam sair da minha cabeça pra adquirir existência nesse mundão. Infelizmente ou não, a quantidade de tempo disponível não é proporcional à quantidade de ideias que tenho, estas surgem em forma de progressão geométrica, por isso eu resolvi adotar um princípio de vida pra não entrar em colapso: deixo as ideias ganharem o mundo porque aí alguém pode ir lá e experimentar. Então, mais do que ter ideias, eu gosto de dar ideias. E nessas, às vezes me enfio em roubadas. Tem sempre alguém que acredita que quero, eu mesma, testar as ideias. Já aviso que não. Porém, por causa destas pequenas confusões, tive que adotar outro princípio de vida: escolher somente algumas pra colocar em prática e as outras eu dou, falo tchau, beijo, me liga. Quero que ela vá andar por aí e dê espaço praquelas que eu escolhi. Se cruzarem meu caminho de novo, falo oi, vejo como andam e percebo se vamos andar juntas ou não. Podemos até passear um pouco antes de uma nova despedida. Sei lá... deixa rolar...

Geralmente, as favoritas são complexas porque eu adoro desafio, coisa que dá trabalho, saca? Vai entender a cabeça das pessoas... mas eu sou assim, fazer o quê? Com o tempo, fui percebendo que as ideias complexas precisavam ser explicitadas de um modo mais detalhado pra que pudessem ser compreendidas pelos outros e foi mais ou menos por aí que descobri o gosto por fazer projetos. Eles nada mais são que a complexificação das ideias expressas em forma de sistema-síntese. Deu pra entender? Não? Peraí. Vamos por partes, mas guarda bem essa frase: complexificação das ideias expressas em forma de sistema-síntese.

Vamos supor que você viu lá na lista alguém postar um link de um vídeo. Apesar de nunca ter feito nenhum, você gostou tanto que resolveu experimentar e fazer um pra ver como é. Começou fazendo com um celular e curtiu a brincadeira. Foi se entusiasmando e fazendo cada vez mais até que um dia mandou uma mensagem dizendo que tava afim de fazer vídeos sobre a problemática do lixo eletrônico na sua região e apareceram mais alguns interessados na sua ideia. Como todos moravam na mesma cidade não foi difícil marcar um encontro pra falar do lance, embora cada um trabalhe numa coisa diferente e esteja fazendo esse vídeo nas horas vagas. Rolou o encontro e todo mundo voltou com um monte de ideias pra casa, bem mais do que cada um tinha antes, quando tava sozinho. Umas legais, outras nem tanto. Só que o combinado era fazer um único vídeo. E agora? Aí vocês decidiram conversar mais, pra ver como fazer. Com a conversa rolando, foram percebendo que era melhor escolher só algumas coisas, pois, do contrário, o vídeo ia ficar muito longo. Escolheram alguns lugares pra filmar e foram. Como cada um tinha tempo livre num dia da semana que não coincidia com o do outro, acharam melhor cada um filmar um pouco e depois se encontrariam de novo pra ver o que tinha saído. Dito e feito. Agora já havia muita imagem e perceberam que não ia caber tudo num vídeo só no Youtube e que era melhor fazer vários. Mas em vez de cada um fazer o seu, embarcaram na ideia de misturar as imagens captadas pra ver qual é que é. Como tinha muita coisa, alguns preferiram se encontrar pra copiar os arquivos, enquanto outros subiram na rede aos poucos. Nessas, desde o dia que você mandou a mensagem avisando a lista que ia fazer o vídeo até agora, já se passaram quatro meses. Você só se dá conta porque alguém que só vê as mensagens de vez em quando aparece do nada e pergunta: e o vídeo? Aí vem tua resposta: tamo fazendo...

Vou parar por aqui porque a essa altura você já ter descoberto que se parece comigo: também gosta de coisas complexas. Acha que não? Então veja bem: Quem mandou avisar lá na lista? Por que não ficou de boca fechada e continuou fazendo as coisas individualmente? Por que foi escolher o assunto “lixo eletrônico” em vez de filmar o aniversário de alguém da sua família? Quem mandou ser curios@ e sair de casa pra falar com pessoas que você nunca viu além da tela? Por que foram inventar de misturar tudo que é material?

Concorda comigo, agora, que você complexificou a coisa? Então, somos parecidos porque somos humanos e seres humanos sempre querem algo mais. Bom, dependendo do seu mapa astral, você pode querer muito mais que algo mais. Se tiver um ascendente como o meu, sinto lhe dizer, mas você tá frito...

Repare bem que em nenhum momento eu disse complicar, eu tô falando de tornar complexo e não complicado. São coisas bem diferentes. Até porque você estava se divertindo com a brincadeira, não há motivos pra deixar a coisa chata. E aí , prestou atenção no que eu disse agora? Então, essaí do vídeo seria uma brincadeira com ritmo dos “contos de acumulação”, que são aquelas histórias meio musicais da tradição oral (ou, se você é da época em que existia uma coisa chamada “folclore”, deve ter aprendido isso na escola) em que as personagens e situações vão se acumulando e repetindo. No começo era um vídeo feito por um alguém, depois vieram outros alguéns; no início era um só vídeo, depois seriam vários; antes era só juntar as imagens captadas pelas pessoas, depois pareceu mais legal mixar tudo, etc. À medida que a coisa ia rolando, novos elementos iam sendo incorporados.

O que você estava fazendo era nada mais, nada menos, que um projeto. Só “faltou” a segunda parte daquele frase que eu pedi pra não esquecer: complexificação das ideias expressas em forma de sistema-síntese.

Dá pra dizer que esse projeto do vídeo foi sendo feito meio sem querer - brincadeira pura, sem regras pré-definidas - e se tornando complexo na medida em que ia se desenvolvendo. Ninguém ficou pensando muito em como as coisas iam acontecer: um grupo se formou ao acaso a partir do objetivo comum de fazer um vídeo sobre lixo eletrônico. E depois disso, tudo começou (ou continuou) a rolar espontaneamente.

Essa palavra “objetivo”, destacada, tem a ver com o outro trecho grifado do parágrafo anterior: expressas em forma de síntese, que por sua vez tem a ver com o que eu grifei logo no início deste post – uma ideia aparentemente simples e texto que descreve as intenções e ações para colocar tudo em prática. A parte do vídeo é exatamente a tal da ideia aparentemente simples, isto eu sei que você já notou. À medida que ela foi se tornando complexa, teria sido possível expressá-la em forma de texto pra descrever as intenções e ações para colocar tudo em prática.

Isto não aconteceu porque você e as pessoas com quem foi se encontrar não quiseram ou não acharam necessário fazê-lo, todos preferiram (com menor ou maior grau de consciência) continuar espontaneamente. No entanto, mesmo sem vocês terem escrito nada, caso quisessem, já teriam definido um importante aspecto do projeto: o objetivo (fazer um vídeo sobre o lixo eletrônico).

Tradicionalmente e quase sempre, o texto de um projeto tem, basicamente: objetivo, justificativa, metodologia, cronograma e orçamento. Estes cinco itens são considerados suficientes para que outros entendam quais as intenções e ações para colocar suas ideias em prática. Não vou me aprofundar nisso agora porque é bastante coisa e, por mais que a gente tenha que se acostumar a ler posts longos pra se acostumar também com a ideia de que projeto tem a ver com ler e escrever, vou tentar manter o limite do post anterior. Desse jeito me parece uma boa troca: vou tentando aprender a escrever pouco (quem sabe aí vou pro twitter) enquanto você se dispõe a aprender a olhar melhor pros projetos e escrever sobre eles ou, no mínimo, conversar comigo.

Mas só pra te deixar preparad@, já aviso que pretendo falar sobre os tais cinco itens (objetivo, justificativa, metodologia, cronograma e orçamento) e o porquê de considerá-los um “sistema-síntese”. Por enquanto, vale o óbvio: sistema tem a ver com partes que se relacionam e síntese, com resumo.

Quero agora sair da escrita e voltar pro começo, ao título: o desenho-desejo.

Eu não sei o que é desenho pra você, mas até pra mim, que fiz artes plásticas, é uma coisa que não sei fazer direito. Penso assim quando me vem à cabeça aqueles desenhos realistas ou acadêmicos, mas depois mudo de ideia quando lembro que estamos na era contemporânea em que tudo (ou quase) é permitido. Nem mesmo é preciso usar apenas lápis e papel atualmente. Vou me lembrando de muitos artistas: desde os esboços do Giacometti (ou do famigerado, porém preciso, Picasso,) às experimentações da Mira Schendel ou os diários-desabafo do Leonilson, passando pelos colegas próximos e antigos, deixando os cartunistas pra depois. Vou mais longe e lembro que as letras também são desenhos. Talvez você ache isso um exagero, mas pensa naquela época em que só existia telefone fixo e com fio. A gente começava a fazer rabiscos e ao final da ligação já existia uma composição, nem sempre boa, é verdade. Pequenos traços, como os que a gente usa pra escrever o A, provavelmente eram o que te ocupava, se você, como eu, não “sabia desenhar”. Riscos horizontais, verticais e diagonais aos quais você não deve ter dado importância... mas são exatamente a mesma máteria-prima pra criar o desenho de uma padronagem. O que é o xadrez afinal, se não um monte de linhas que se cruzam? Talvez, se não tivessem inventado o telefone sem fio, muito mais gente corria risco de ser desenhista!

Não foi o meu caso, só fui fazer artes plásticas porque já estudava música, dança e teatro, então achei mais legal fazer algo que eu não soubesse ainda. Mesmo sem “talento prévio”, lembro de coisas ótimas dos tempos da faculdade e vou citar duas. Me recordo de uma parceira de ideias mirabolantes que tinha vontade de fazer uma instalação (acho) sobre como transformar em desenho o pensamento das pessoas. Dizia ela que alguns pensavam em forma de círculo, outros de espiral e muitos de outras formas, que ela gostaria de tornar visível.

Além dela, tinha um professor de cinema que trabalhava “tãobém” com animação. Depois da aula, eu pedia pra ele fazer um desenho pra mim, sem dizer o que seria, enquanto eu ficava olhando. Gostava de vê-lo desenhar porque ia tentando adivinhar o que ia sair dali, era como se eu tivesse vendo uma ideia surgir e ganhar corpo. Como pode uma linha ter tanto poder de transformação? Ela pode ser absolutamente qualquer coisa!

Mesmo que você nunca tenha feito isso ou ache essa viagem uma grande palhaçada, dependendo de quantos anos tem e onde mora, deve ter ouvido falar do Daniel Azulay. Ele fazia algo parecido com isso na TV: uma linha e, como que por mágica, um desenho surgia.

Não vou entrar nos méritos sobre o modo como ele ensina a desenhar porque isso não vem ao caso agora, o que importa no momento é pensar no desenho como essa possibilidade de tornar visível pro outro, uma ideia.

E isso tem bastante a ver com projeto. Bastante mesmo. No caso do vídeo, por exemplo, mesmo sem nenhum texto, foi necessário pensar, conversar com outros, experimentar, fazer um pouco, mudar de ideia, parar, recomeçar, etc. Ou seja, por mais que a ideia tenha saído da sua cabeça, foi na relação com o outro que ela ganhou vida e foi adquirindo forma. E isso acontece até mesmo quando o projeto é “só seu" e você não conta pra ninguém que tá fazendo. À medida que interagimos com o mundo é que vamos desenhando um projeto, isto é, dando forma a um desejo.

Se vamos transformar o desenho-desejo no tal texto-padrão: objetivo, justificativa, metodologia, orçamento e cronograma e /ou em pequenas variações sobre o mesmo tema, é outra história. Não podemos perder de vista a essência das coisas: uma ideia e um desejo. É daí que todo projeto surge, não importa qual seja ele, que tamanho tenha, se você tem ou não (clareza dos) meios para desenhá-lo.

Com grande frequência, se pensa no projeto apenas como o texto (que eu chamei de “sistema-síntese”) que apresenta a ideia. Também é comum que essa necessidade do texto surja quando se tem uma vontade que se tornou complexa o bastante a ponto de exigir (mais) dinheiro para realizá-la. Na verdade, certamente já foi gasto dinheiro e outros recursos foram mobilizados, mas isto não se tornou perceptível ou a grana não tava fazendo falta antes. Como no caso do vídeo, em que você gastou tempo, horas na internet e dinheiro pro transporte que te levou ao encontro das outras pessoas ou pras filmagens, acionou sua curiosidade, desenvolveu a habilidade de se comunicar com os outros e muitas outras coisas. Seguindo o fluxo da espontaneidade, pode ser que a certa altura desejassem ir viajar pra filmar o lixo eletrônico de outros lugares ou que tivessem vontade de exibir os vídeos num lugar com uma tela bem grande em que os amigos pudessem se juntar e ver. Talvez nesta hora pudesse faltar grana e aí vocês teriam que achar um jeito de conseguir.

Se até agora você tava achando legal brincar de fazer vídeo, mas tava sem nenhuma vontade de escrever sobre a brincadeira ou planejar o processo todo, não se preocupe, você é um(a) brasileir@ bem normal, como eu ou qualquer outr@. Muita gente acha isso, de escrever e planejar, algo chato, mas eu, nem sempre. Deve ter um quê de hedonismo (não masoquismo, acredite) aí, mas eu realmente gosto de brincar e me divertir e só por isso aprendi a gostar de pensar nos projetos (portanto, há mais oportunidades de ter satisfação), seja em forma de texto ou desenho no ar. Esse vídeo por exemplo talvez fosse uma brincadeira escolar bem antiga, o tal do desenho-cego: você fecha o olho e vai, às vezes troca de papel com os colegas pra continuar. Por que não continuar na sintonia da diversão e da brincadeira?

Acredite, o texto é só um detalhe e a gente não precisa seguir a ordem objetivo, justificativa, metodologia, orçamento e cronograma. Ou era ao contrário: cronograma e orçamento ? Já não lembro mais... Falei muito e estou perto de atingir o limite do post. Aliás, este post é um exemplo de que a “ordem” é algo muito relativo: Veja como as palavras aparecem no título: desenho, desejo, brincadeira e projetos. E observe como estes mesmos termos foram surgindo no texto: completamente fora da ordem, com algumas sobreposições e um vai e vem. Por que as coisas são assim mesmo: não há uma única ordem, a gente vai, volta e depois vai mais um pouco pra voltar outra vez mais adiante. Por que com os projetos seria diferente?

Cada uma começa por onde quiser, duvido que alguém saiba precisar onde começa um desejo ou uma ideia. Assim como eu também duvido que todo mundo comece a desenhar no mesmo lugar da folha. Aliás, quem sabe onde ela começa ou termina, se o grafite é melhor que a caneta ou mais macio que um giz?

Bom, tá na minha hora e não há mais espaço para perguntas. Mesmo neste texto com as coisas fora de ordem, espero que algumas coisas tenham ficado claras – o que temos em comum, pelo menos: complefixicamos as coisas, às vezes sem querer; temos ideias e desejos; e, no caso de alguns, não sabemos desenhar. Se você, ao contrário de mim, não gosta de pensar por projetos, ainda assim temos mais afinidades do que divergências. Conversaremos mais outro dia, então, né? Tá combinado!

 

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