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qua, 27/01/2010 - 01:12

Jaiminho também faz projetos

Ainda naquela ideia de desenho-desejo, no longo post anterior deixei de fora uma relação importante entre projetos e hqs.

Do mesmo modo que entrei pro mundo das artes plásticas sem saber desenhar, nunca fui expert em quadrinhos. Sempre cheguei ou saí desse universo pela tangente e a experiência mais intensa foi a invenção de um presente que envolveu um mergulho por coleções alheias. O lance foi o seguinte: havia uma geladeira velha que precisava de um up e tive a ideia de cobri-la por completo com ímãs. No entanto, em vez dos tradicionais biscuits e frutinhas com sorrisos, a saída foi escolher diversas tiras ou páginas inteiras da coleção dos gibis que ocupavam uma parede e mandar imprimi-las em adesivos com placas magnéticas por trás. Com isso, a geladeira ficaria mais divertida e a cada dia seria possível recriar as histórias, misturando as tiras e personagens. Foi um trampo, mas ficou bem legal vê-la toda coberta sem um espacinho da pintura (e os pontinhos de ferrugem) visível, a porta e as laterais viraram um gibi gigante. Desta época de “pesquisa” (com método e resultados pouco ortodoxos pros padrões científicos, convenhamos), me lembro apenas de alguns momentos de diversão na montagem do quebra-cabeça e do Surfista Prateado, com seu alerta sobre a poluição atingir níveis alarmantes. Tenho curiosidade em saber o que ele diria agora, nesse começo do ano de Oxalá...

Passou o frisson da brincadeira e tempos depois, logo após ter visto a primeira montagem do Avenida Dropsie com a curitibana Sutil, achei que poderia voltar pro Will Eisner ou até o Crumb esquecido e olhá-los com mais cuidado. Fui dar uma volta na Livraria Cultura, pra vasculhar o espaço, com essa missão na cabeça. Mas ao chegar lá, tinham dois caras exatamente na prateleira que eu queria consultar e não saíam nunca. Enquanto esperava, olhando a estante ao lado, um deles disse pro outro: “se eu encontrar uma mulher que goste de quadrinhos, eu caso”. Não entendi bem se foi uma indireta ou se ouvi o meio de alguma conversa; por via das dúvidas, escolhi sair logo de lá. Até já disse aqui que vale a pena correr riscos, mas os desse tipo eu prefiro evitar. Achei melhor continuar com o ballet e as outras brincadeiras de menina, abandonando as hqs desde então.

Com isso, me faltam referenciais bacanas pra citar neste texto. Não estou conseguindo ficar muito longe da tradicional ideia de “arte sequencial”. Também não devo dizer muito mais do que qualquer um é capaz de perceber: há uma mistura entre texto e imagem; dá até pra arriscar que o mix de linguagens implícito nas hqs envolve o teatro, pois as construções de personagens e cenários são dignas de nota. É por causa destas conexões esdrúxulas que eu acredito que hq tem a ver com projeto. É mais um jeito bacana de dar forma ao desejo, pois envolve um tipo de desenho “sistêmico”, em que uma coisa se liga a outra com muita facilidade e nenhum elemento vive só ou está ali por acaso (ainda que o motivo às vezes não tenha se tornado explícito, nem mesmo pros criadores). Sem contar a própria ideia de sequência: tem uma relação direta com planejamento (desde que a gente não se esqueça de que a primeira não é sinônimo de “[reti]linearidade” e o segundo, permite ações paralelas e simultâneas).

A essa altura do post queria ter A personagem e A história sensacional pra usar como mote pras analogias desta vez. Mas nada me ocorre. Pra ter uma noção da minha falta de criatividade, o único “super herói” que me vem à cabeça, nem saiu do papel e sim da TV: o Chapolin Colorado. A falta de domínio sobre a minha própria mente é tanta que eu sequer consigo explicar o motivo desta lembrança. Nem gostava destes episódios, na ocasião não entendia como alguém poderia “enganar crianças” com uma chuva de meteoritos de isopor ou uma cadeia cuja cela poderia ser desfeita com um chute. Pensava: por que eles não pintam as grades, portas e cadeiras por dentro, já que a gente pode ver o branco do isopor quando se quebram? Essa “falcatrua” só ficava atrás dos filmes-séries japonesas com monstros enormes e suas grandes dificuldades em se mover. Eu gostava da velha e boa vila com o menino do barril, mais algumas variações na escola e adjacências. Dentre as aceitáveis, estavam os capítulos no restaurante em que o Jaiminho sentava pra tomar café com rato.

Tava lembrando dia desses, provavelmente em algum corre prum edital, que Jaiminho era carteiro. Fiquei pensando no que aconteceria se ele trabalhasse em Brasília e entregasse correspondências lá no Minc. Imagine-o fazendo o mesmo de sempre: pedindo prum funcionário da portaria procurar as suas cartas nas últimos dias de entrega de inscrições pros editais (que se multiplicaram vertiginosamente nos últimos tempos, diga-se de passagem). Pare um pouco pra pensar nesse encontro surreal: um carteiro que exige destinatários pró-ativos (será que os Correios do México são uma grande corporação e fazem treinamentos às avessas com seus contratados?), um órgão público federal que tem a mesma proporção de funcionários e orçamento, (inversamente proporcional à extensão territorial e diversidade do país que representa, é bom destacar) e muitos envelopes, cujo interior guarda um pouco de indivíduos tipicamente brasileiros, como nós, que deixamos tudo pra última hora e temos muitas histórias pra contar sobre nossas vizinhanças.

Isso não é bom, como diria uma colega. Mas pelo menos diverte. Adoro pensar em situações bem nada a ver. Porque acontece cada coisa absurda na vida da gente que a certa altura é melhor rir e tentar imaginar algo mais absurdo ainda.

E hoje, nesse dia de total falta de imaginação, quando a memória hiberna e nenhuma narrativa surge pra me socorrer, fico na dúvida sobre o que teria acontecido com Jaiminho. Das duas, uma: ou ele pára num lugar que eu não faço ideia qual seria (todas as vezes em que vou pra Brasília me pergunto onde andariam os pedestres naquela cidade “planejada”) e toma o seu café. Ou ele vai tomar café no MinC mesmo e quando menos espera, tá lá ajudando a separar os “projetos”. Se bobear, alguém o chama pra comissão julgadora... Os paranóicos que tão lendo esse post, se acalmem: isto não é nenhuma acusação ou crítica subliminar. Só falei isso porque dava aula numa cidade da Grande São Paulo, num curso profissionalizante, e os meus alunos adolescentes às vezes iam lá ajudar no posto de saúde municipal, afinal de contas tinham um bom grau de escolaridade e daqui a alguns meses estariam na faculdade, se não fossem as condições financeiras. Saber ler (nada de Foucault, não, tô falando do jornal mesmo, se bobear o balãozinho da charge) não parecia um pré-requisito importante e nem fazia diferença o fato de estarem estudando “cultura” em vez de enfermagem ou coisa que o valha num ambulatório. Faltava gente e alguém tinha que ajudar. Um dia uma aluna veio me dizer que um voluntário lá do posto tinha dito a ela que, para evitar filhos, bastava tomar o comprimido no exato dia em que tivesse “relações”. Soa meio vaga essa palavra “relações” prum adolescente, mas um pequeno errinho na orientação e outro na interpretação, já sabe onde vai dar: a outra menina me perguntando se ela podia continuar tomando os remédios da bronquite pra se livrar do bebê em sua barriga ou se eu conhecia outro melhor, mais eficiente, pra indicar. Nunca mais fui pra essa cidade depois que o curso acabou, mas se bobear, alguém já deve ter feito o funk do Cytotec, o verdadeiro rei da periferia...

Você deve estar se perguntando por que dizer isso agora, no meio do post? E eu vou te responder: também não sei. Aliás, já tô dizendo isso desde o começo e você insistiu em continuar me acompanhando. Olhando bem, esse texto tá parecendo um filme do Alain Resnais que eu fui ver no cinema outro dia, num ciclo de clássicos . Plateia non-sense, tão absurda como esse texto. Ela combinava com o filme. Foi ficando incomodada no meio, as pessoas não paravam de se mexer, alguns tomavam coragem e saíam da sala, enquanto outros ficavam, sublimando o desconforto e olhando o relógio disfarçadamente. Quem se atreveria a sair no meio de uma película cult? E o medo de parecer idiota?

Fiquei vendo toda a cena e rindo sozinha, me perguntando como é que o Alain Resnais iria resolver aquele enredo e como havia se dado sua relação com o roteirista. Sabe quando o cara vai indo feliz e contente, refém do próprio devaneio, mas você, [des]atento, percebe que a história não vai fechar, apesar de todo aquele colorido e apuro visual? Ora, todo mundo sabe que cinema não é como gibi, que vai sair outro número daqui um mês ou quinzena... Aí você olha no relógio, percebe que tá quase na hora, mas não vê saída? Então... ainda devo estar sob influência desse diretor aí...

Filme francês tem dessas coisas: não precisa ser “coerente”, basta ser contundente. Não é a mesma contundência expressionista dos alemães, é um tipo de intelectualismo associado a uma certa descrença ou desdém pelas virtudes humanas. Parece frio, pra nós, latinos. E por isso não posso acabar o troço agora, ia parecer por demais inverossímel pra nossa cultura. A minha sorte é que eu tenho o carteiro mexicano. Aqui ele faz as vezes do William Bonner no Jornal Nacional, é âncora, dá uma segurança, entende?

Sim, porque o Jaiminho tá no título, então é ele o protagonista da história. Corta essa cena dos comentários sobre a região periférica de São Paulo, sobre o Resnais, e vamos voltar pra ele.

Bom, nessas, de ir toda hora lá no Minc porque todo dia termina o prazo de inscrição pralguma coisa, começou a se interessar por “projetos”. Não um interesse, assim... legítimo, genuíno, verdadeiro, do fundo da alma. Como pra muita gente, foi a força das circunstâncias... enquanto tomava seu café, começou a ler várias coisas tão esquisitas quanto esse texto: um parágrafo que até tem uma ideia legal; outro trecho com uma situação aparentemente independente da anterior; certas citações ambiguamente íntimas e desconhecidas pela maioria do universo; alguns depoimentos pessoais que parecem interessar apenas a quem escreveu e mais meia dúzia dos que lhe são próximos; mais algumas palavras que revelam um pouco de um contexto social que ele desconhecia, mas dá margem pra indignação ou comoção coletiva; e um autor ou intelectual mencionado de relance. Resumindo: Jaiminho leu muito, mas não entendeu quase nada. Tinha em mãos um monte de textos que não fecham, não “descem redondo” ou teriam sido psicografados pelo roteirista do Alain Resnais. Definitivamente, não compreendia o que lia e nem porque a palavra “projetos” aparecia tantas vezes. No fundo, nem sabia o que eram projetos e dificilmente acreditaria que eles têm algo em comum com os quadrinhos, algo que gostava desde criança.

Num desses dias em que foi escalado pra ajudar, ouviu falar um pouco da necessidade dos projetos terem objetivo, justificativa, metodologia, cronograma e orçamento ou um plano de trabalho. Ouvia alguma pessoas repetirem isso, mas não conseguia entender como aquilo se relacionava àquele tanto de pergunta dos formulários dos editais, que havia lido há pouco durante o café. Nenhuma das perguntas era assim, direta e reta, assertiva como a serpente: diga qual é o objetivo do seu projeto. Não tinha lido nenhuma vez a palavra “metodologia”. Tinha absoluta certeza disso. E como se não bastasse, começou a ouvir coisas que pareciam siglas. Pronac era uma delas. Foi nessas que ele se deu conta que estava no lugar errado. Ali ele deveria entregar as correspondências do tipo “Rouanet”, que não tinham prazo final e podiam chegar a todo instante. A sala dos editais era outra. Talvez por isso estivesse com tanta dúvida... Muita tabela, muito número, muitos itens...

Mas como já eram umas 4 da tarde, teve que ir embora e voltar outro dia. A essa hora, o pessoal devia entrar em reunião porque os telefones tocavam sem parar e ninguém atendia. Ele ficou meio cansado com essa confusão e o barulho; antes de voltar pra casa, resolveu tomar outro café.

Foi quando, sentado na mesa, começou a se lembrar de um treinamento do qual havia participado na sua corporação. Apesar da roupagem típica e a influência da cultura power point, tinha aprendido algo importante que levaria pra toda sua vida: todas as coisas que parecem complicadas podem ser simplificadas de alguma maneira. Ficou imaginando como simplificar tudo aquilo que havia lido durante os cafés do último ano e teve um insight: em vez daqueles longos textos, podiam fazer assim:

  • O quê?

  • Por quê?

  • Quem?

  • Onde?

  • Como?

  • Quando?

  • Quanto?

 

Daí ninguém precisaria escrever tanto. Alguns tópicos bastariam.

[O carteiro não costumava usar internet, mas ele acaba de me dar uma ideia. Com base nestas perguntas, é possível estruturar um projeto via twitter!]

Jaiminho gostou da sua ideia porque responder estas perguntas ocuparia poucas folhas, as correspondências ficariam menores e sua sacola de carteiro, mais leve. Sua filosofia de vida estaria preservada... nada de cansaço extremo.

No fundo, no fundo, o que Jaiminho queria mesmo era pegar sua bicicleta e voltar logo pra casa. Sempre gostou de andar de bicicleta e por isso quis ser carteiro lá no México. Além da bike, sua paixão adolescente eram os quadrinhos...

Hoje, depois que termina de “entregar” as correspondências, pedala rapidamente em direção a seu bairro. Lá tem uns meninos que, como ele, adoram quadrinhos. Eles também gostam de desenhar e pintar paredes.

Jaiminho já está em Brasília há algum tempo e talvez por isso não se lembre do muralismo mexicano, mas tem uma vaga noção do que seja graffiti. Ele espera sua aposentadoria pra ter tempo de ficar lá com os meninos, conversando sobre quadrinhos e os vendo pintar. Pensa até em montar uma associação pra arrumar um dinheiro e permitir que eles possam desenhar em paz, pra não começarem a trabalhar tão cedo como ele fez.

Porque trabalhar cedo, às vezes cansa logo.

Vai ver que é por isso que Jaiminho vive a repetir “eu prefiro evitar a fadiga”...

 

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