As pessoas às vezes me perguntam porque é que eu sou tão chato com certas coisas.
Para a grande maioria destas perguntas eu não tenho nenhuma resposta racional. Mas para algumas eu tenho.
Vou tomar o exemplo da parceira entre o Matehackers e a ONG Abrace, da Embratec.
Quando eu fui lá fazer as primeiras entrevistas com o pessoal da Embratec, da ONG Abrace e do Matehackers (no caso, somente eu), eu relatei que ando pelo Brasil e vejo muita coisa que não acontece conforme as minhas expectativas.
Tem legislação para descarte e destinação de equipamentos eletroeletrônicos, e também para resíduos eletroeletrônicos que eu lutei junto pra construir.
Tem inúmeras iniciativas de empresas, organizações, instituições, pessoas para tentar atingir alguns objetivos de descarte e destinação de equipamentos e resíduos eletroeletrônicos por todo o mundo.
Não há uma única iniciativa satisfatória, no mundo inteiro. Qualquer pessoa dedicada e interessada certamente chegará à mesma conclusão, e se não chegar é porque não buscou direito. Nunca ouvi uma opinião contrária a esta que não passasse por desinformação. Quem quiser tentar refutar, sinta-se à vontade.
Quando eu aceitei e assumi a responsabilidade lá junto com o Vagner, com a Embratec, com a ONG Abrace e com o Matehackers, eu declarei explicitamente que eu tinha esperança de fazer alguma diferença.
Porque todo e qualquer processo de destinação de computadores termina da mesma forma: máquinas são desviadas, componentes e equipamentos são descartados no lixo comum, vão para os aterros de onde estávamos tentando evitar que eles fossem, ou vão para a casa de pessoas que precisam daquelas máquinas menos que outras pessoas que teriam menos acesso à tecnologia.
As minhas experiências, e a minha interpretação acerca das experiências de muita gente me permitem afirmar que:
<ul>
<li>Dar computadores para as pessoas não é o suficiente. De fato, simplesmente largar o computador nas mãos das pessoas pode causar mais problemas do que providenciar soluções, em todos os casos que eu já presenciei.</li>
<li>Observar, influenciar, interferir nas consequências sociais que causa a tecnologia na vida das pessoas (também chamado de "impacto"), é uma coisa desejável.</li>
<li>A pergunta que para mim faz sentido fazer sempre, escrever nas paredes, embaixo do travesseiro, nos muros, na tela do computador, e na mente de todo mundo que estiver por perto, é: "Como é que a tecnologia vai ser utilizada pelas pessoas e não o contrário?".</li>
<li>Termos como por exemplo, mas não limitados a "apropriação crítica da tecnologia" são de suma importância.</li>
</ul>
Uma coisa é alguém ver na televisão, ouvir alguém falar e fazer de conta que concorda, aceita e reconhece que existem pessoas com necessidades reais e que precisam ter acesso à tecnologia.
Outra coisa completamente diferente é alguém ser obrigadx a passar o dia inteiro, todo dia, vendo estas coisas. Vendo e convivendo com gente que tem necessidades reais, e que precisam de gente trabalhando pra garantir que terão condições melhores. Quando eu digo "condições melhores", não estou dizendo que eu sei o que as pessoas precisam. Estou me referindo à capacidade das pessoas de poderem decidir se é interessante terem condições melhores, e o que são condições melhores em primeiro lugar.
Eu poderia ilustrar o que eu digo e fazer documentários, fotografias, escrever relatos de pessoas que são realmente carentes, pobres, ou sei lá qual é o novo termo moderno e menos preconceituoso que esta sociedade inventou para rotular estas pessoas. No meu tempo usavam "gente humilde", "pessoas que vivem em área de vulnerabilidade social", etc.
Mas este trabalho seria desgastante e a única coisa que eu ia ganhar com isto seria visibilidade e reconhecimento. São duas coisas que eu tenho asco e dispenso. Eu prefiro que as pessoas tenham nas mãos a capacidade de fazer fotografias, documentários, e escrever sobre as suas vidas e suas histórias para realizar a mudança que pretendem.
Mas se estas pessoas não têm estes recursos à disposição, como é que a sociedade vai ver que elas precisam destes recursos, se eles não tem os recursos para mostrar para a sociedade que eles precisam de recursos? Peculiar.
Como eu sempre digo, estas coisas não têm como depender de mobilização social. Porque a midia convencional não vai registrar estas coisas e mostrar pra todo mundo. E tu, que já tem a interpretação prejudicada, vai ver as crianças recebendo computadores, criando contas no Facebook e utilizando o computador estritamente para isto, e vai achar normal.
Não te incomodará o fato de que empresas resolverão o problema de descarte dando computadores que iriam para o lixo para comunidades, para que estas comunidades tenham acesso a serviços e produtos de parceiros destas empresas. Porque quando uma comunidade começa a ter acesso ao pouco dinheiro que nunca tiveram antes, lá estará a força de equilíbrio do capitalismo pronta para introduzir aquelas pessoas na mesma vala comum dos consumidores que já existiam antes.
A máquina tem que girar. E eu sou conivente.
Não te incomodará o fato de que 100% das pessoas, organizações e instituições que declaram ser transparentes não têm a mínima noção do que é que significa este termo. O que estas pessoas, organizações e instituições realmente deveriam dizer é que são um fiasco no que tange a transparência e que têm muito a aprender sobre isto. Mas elas geralmente se anunciam como "a primeira em transparência" ou coisa parecida.
Matehackers não é exemplo de transparência. Eu não sou exemplo de transparência.
Se tem como atingir este conceito, só temos chance nos associando, nos agrupando, colaborando, cooperando. Isto é uma premissa básica e antiga, não estou reiventando a roda, tampouco propondo algo revolucionário ou extraordinário.
Cooperação neste caso seria transformar o velho no novo.
Com menos vaidade, menos descaso, mais atenção e mais boa vontade alguém teria alguma chance de alcançar a transparência.
Mas há poucxs interessados porque transparência não é uma coisa que tu, verme infeliz, consegue enclausurar em um recipiente fechado e vender aos poucos. É o exato oposto disto.